Artigo de Rui Arimateia, etnógrafo: “O sol ‘invictus’ e o Natal”

A época do Natal poderá ser considerada a quadra festiva ímpar para recordarmos o valor do nosso “caldo cultural” enquanto cidadãos do mundo. O imaginário do Natal sempre tocou fundo o alentejano em geral. Rui Arimateia (texto) e Susa Monteiro (ilustração)

Diz o povo na sua sabedoria milenar: “Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”. As tradições populares celebram incontáveis manifestações ligadas ao espírito do Natal e do nascimento, contudo todas convergem numa só realidade espiritual universal: a conquista das trevas pela Luz.

A universalidade da celebração do Natal acontece porque esta festa foi apontada no calendário para coincidir com o solstício de inverno, celebrado por diferentes culturas humanas muitos milénios antes dos relatos do nascimento do “nosso” Menino Jesus.

Escreveu Helena Neves, num artigo do “Público” (31 de dezembro de 2004): “Antes do Menino foi o Sol. O Sol, fonte e símbolo de vida que, ciclicamente, desaparecia cada vez mais cedo no horizonte e tardava cada vez mais a nascer. O mistério das noites tornadas mais longas inquietava os povos como ameaça à vida”.

Com o auxílio da palavra de Pierre Vial: “No solstício de inverno, na noite mais longa do ano, os homens encetam uma longa velada na qual, mantendo a chama na lareira familiar, depositam a sua confiança na perenidade da vida. Com recolhimento. E o Sol não ilude a sua esperança: retoma o seu fulgor no céu do inverno antes de subir, dia após dia, sempre mais alto, no céu da primavera”.

Assim se compreende a celebração assumida pelos cristãos nesta época do ano, da festa chamada Natividade ou Natal, no intuito de comemorarem o nascimento de Jesus – o Cristo, o Salvador do Mundo. Festa religiosa tradicional que celebra a passagem do Sol pelo solstício. Festa que sofreu diversificadas evoluções ao longo dos milénios, consoante os povos e as mentalidades que dela se apropriavam culturalmente.

Esta celebração foi instituída canonicamente tão-só a partir do século IV da nossa era pelo Papa Júlio I. O costume da festa religiosa em finais de dezembro tinha origens remotas, a Igreja de Roma apenas fez coincidir o nascimento de Jesus em 25 de dezembro para, de certo modo, sacralizar os festejos pagãos pré-existentes, reformando toda a manifestação da sabedoria-sageza contida nos Antigos Mistérios.

A tradição do Natal, por conseguinte, não é apanágio exclusivo dos cristãos, com a representação da Natividade do Menino Jesus, com o nascimento de um Menino-Rei de uma Virgem.

Já os antigos druidas celtas celebravam o dia 25 de dezembro com iluminações. Mitra, avatar oriundo da antiga Pérsia, nascia de uma Virgem neste mesmo dia, assim como Horus, uma das figuras da antiga trindade egípcia. Igualmente, entre os gregos nascia Baco e, entre os fenícios, Adonis; na Índia temos também o exemplo de Agni.

Todos eles com o significado da representação ou manifestação do Deus-Sol entre a humanidade. Todos eles personificações do ancestral mito solar cósmico – que considerava o Sol como a fonte inesgotável de toda a existência e o símbolo, por excelência, do ser divino e origem de toda a criação, o “logos”, a manifestação física do Verbo inefável e eterno -, todos eles festejavam o (re)nascimento do astro após os longos meses de invernia. Era a vitória da luz sobre as trevas, era o nascimento do neófito para a luz, e foi exatamente por isto que a Igreja Cristã fixou o nascimento do “restaurador das iniciações” no solstício de inverno.

O imaginário do Natal sempre tocou fundo o alentejano em geral e o eborense em particular. Temos notícia da existência de importantes presépios em Évora, pertencentes a figuras de destaque na cidade, desde o século XVI. Foi uma tradição que continuou até aos nossos dias. Em muitos lares eborenses ainda hoje se faz o presépio tradicional, ainda as crianças vão ao musgo e com os bonequinhos de barro lá compõem a dramatização lúdica do nascimento do Menino Jesus.

Apesar da “normalização” das tradições nos tempos que correm, e um pouco por todo o território do Alentejo, as memórias das antigas tradições desta quadra festiva ainda dinamizam algumas práticas peculiares, tais como:

– A presença lúdica do presépio com figurinhas de barro, que tradicionalmente era costume as famílias visitarem em algumas igrejas da cidade. Embora não dispensasse a sua construção nas pró- prias casas;

– Ainda em algumas localidades do Alentejo – embora seja um costume de cariz comunitário hoje praticamente inexistente – os vizinhos juntam grande quantidade de lenha normalmente no adro da igreja paroquial, acompanhada por um grande madeiro, que fazem arder durante toda a noite de Natal, aí convivendo. Em algumas residências queimava-se igualmente um grande madeiro na lareira. Os restos do madeiro do Natal guardavam-se para posteriormente acender quando fizesse trovoadas, diz-se, como proteção;

– Por outro lado, em algumas igrejas paroquiais se celebra a Missa do Galo, por volta da meia-noite. Era muito concorrida a de S. Francisco de Évora devido ao facto de se iniciar a cerimónia com a enorme nave iluminada por pequenas lamparinas de azeite, provocando um efeito estético deslumbrante… hoje resta a recordação de quem presenciou aquela beleza natalícia;

– É tradição comum a chamada consoada, missadela, missada ou missadura: reunião familiar após a Missa do Galo, ou por volta da meia-noite do dia 24 de dezembro, em que as pessoas se juntam para cear, consistindo tradicionalmente a Ceia de Natal por diversas iguarias próprias da época festiva: peru assado, bacalhau cozido com couves, linguiça e febras de porco assadas, filhós, rabanadas, sonhos, nógado e arroz-doce. A quantidade e a qualidade das iguarias da ceia correspondiam proporcionalmente às disponibilidades dos ganhos de cada família;

– Após a ceia e antes de irem dormir, as crianças iam colocar o sapatinho ou a meia à chaminé para que o Menino Jesus durante a noite viesse colocar as prendas. É pena que as “lógicas” modernas dos pais natais consumistas tenham destronado este costume tão simples e poético;

– Ainda ligadas com a quadra festiva, cantavam-se, principalmente nas aldeias e bairros limítrofes da cidade, com características rurais, as Janeiras e os Reis. Tradições da religião popular que ainda persistem com várias manifestações ligadas ao canto a vozes, com a saída à rua na Noite de Reis, cantando e encantando os residentes e os forasteiros que àquela aldeia ou outro local se deslocam para usufruírem de uma memória viva.

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