Como Madalena e Giacomo andam a lavrar o mar para mudar o mundo

Na costa vicentina, entre os concelhos de Odemira, Aljezur e Monchique, a coreógrafa Madalena Victorino e o programador cultural e encenador Giacomo Scalisi está a promover a inclusão pela arte, em projetos culturais de dimensão comunitária. Júlia Serrão (texto) e João Gambino (fotografia)

Há muitos anos que Madalena e Giacomo, ela uma mulher da dança, ele um homem do teatro, passavam férias com os filhos em Aljezur e gostavam muito do lugar. Por isso, quando decidiram “que talvez fizesse sentido sair” de Lisboa, foi fácil eleger a pequena vila da costa vicentina para viver. Provavelmente foram os primeiros artistas que quiseram trazer a sua “atividade para o campo, e neste caso para junto do mar”, observa Madalena Victorino.

Aí pensaram e criaram uma Cooperativa Cultural, que dirigem, e a que inicialmente chamaram Cosanostra. Não sendo a reação das pessoas e das instituições positiva à designação inicial, provavelmente por constituir uma referência à máfia, houve que a mudar. Passou a chamar-se Lavrar o Mar, nome que se dá a uma “técnica ancestral da apanha da sardinha”. É um dos projetos conjuntos de Madalena Victorino e Giacomo Scalisi,“companheiros de vida e de trabalho”.

Trabalham em Monchique, Aljezur e Odemira, destacando-se pela criação de projetos culturais e artísticos de dimensão comunitária. “É um triângulo que nos agrada imenso, que escolhemos também com muito cuidado, e também por oportunidades que surgiram, nomeadamente em Odemira”.

Madalena Victorino foi convidada pela primeira vez “a participar artisticamente” num colóquio de natureza científica em Odemira que se chamava “Ignorância & Esquecimento”, apoiado pela Câmara Municipal, em 2013. Pediam-lhe que traduzisse alguns dos conteúdos da conferência, da forma que entendesse. Criou então, “Um Pequeno Festival para Odemira”, assim se chamou, para o qual foi “convocar todas as pessoas que encontrava para contar-lhes as notícias do colóquio. E, ao mesmo tempo, construir com elas algo de ordem performativa”, explica.

Trabalhou com cerca de 200 pessoas, entre profissionais da autarquia e de outras instituições, mineiros, reclusas, vários artistas e leigos nas artes performativas, que foram eles próprios e as suas histórias protagonistas de uma “narrativa com movimento”.

Na continuação do Festival, o então vereador da cultura e atual presidente da Câmara, Hélder Guerreiro, convidou-a a criar um projeto. Assim nasceu o Programa Miragem. “Foi um projeto muito feliz de artes performativas que percorreu regularmente todas as escolas do concelho com propostas de dança, teatro, música, circo, literatura e cinema”.

Dois anos depois, a coreógrafa está de saída para que, diz, “havendo tantos artistas a viver” ali e “a querer ocupar esse espaço de intervenção e ação nas escolas”, algum possa ingressar com novos projetos “e continuar a tradição da atividade artística e cultural no quotidiano escolar”.

Agora, diz-se “concentrada” na realidade das migrações. Nomeadamente das populações que vêm da Índia, Bangladesh, Paquistão e Nepal “tentar as suas vidas” no Alentejo Litoral, e que já são mais de 12 mil pessoas. É uma problemática que vem trabalhando há vários anos através de “projetos de inclusão e integração” destas comunidades “no tecido social de Odemira”, com os apoios da Câmara Municipal e da Direção-Geral das Artes, que visam “conseguir uma melhor qualidade de vida para as pessoas” que vão para ali viver, e para as pessoas que ali vivem “e veem a sua terra transformada”.

O projeto de arte participativa “Bowig” – que significa vénia, gesto de reverência associado ao cumprimento das culturas orientais –, dirigido a imigrantes vindos dos países orientais que se encontram a trabalhar no concelho, maioritariamente em empresas de agricultura intensiva, foi o mais longo, tendo tido a duração de três anos.

Financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, pela Fundação La Caixa e pela Câmara de Odemira, envolveu um trabalho em vários espaços, nomeadamente nas escolas com os filhos destes imigrantes, onde se ultrapassou a barreira da língua comunicando através da arte. Ajudou a integrar quase 300 migrantes de todas as idades através do teatro e da música, e resultou numa plataforma ‘online’ que conta as suas vidas ao longo deste período, em que tiveram oportunidade de aprender, experimentar, atuar e também ensinar. Com este novo enquadramento digital, sublinha, o projeto torna-se global. “Ou seja, para todas as pessoas envolvidas na problemática da inclusão de populações migrantes, em territórios diversos”.

ACORDAR DO SONO

O balanço do projeto torna possível um outro, ou uma segunda parte deste. Chama-se Novo Bowing, tem duração também de três anos, e começou em janeiro “com um conjunto de atividades artísticas que vão misturar pessoas de nacionalidades e culturas muito diversas, e também estratos sociais diferentes”. Madalena Victorino explica que a Lavrar o Mar tem “toda a cumplicidade e apoio” da Câmara Municipal de Odemira, que agora também cede um espaço para a criação da Casa da Interculturalidade.

A coreógrafa trabalha ainda noutra dinâmica que é a dos lares do concelho, com uma equipa de artistas plásticos. O Programa Labat-Idade Maior (Atividades de Formação Entre o Laboratório de Prática Artística e o Atelier de Artista), promovido pela Cooperativa com o apoio do Município, “visa a criação de espaços de experimentação e criação”, em que as pessoas podem ensaiar a “imaginação e o pensamento através das artes”.

São promovidos momentos de música, movimento, canto, desenho, pintura e colagens. Diz tratar-se de “um atelier de artistas e ao mesmo tempo um laboratório para acordar” as pessoas que estão nestas instituições, que tiveram existências “muito ricas” e que agora estão “arredadas da vida ativa e muitas vezes esquecidas”.

Em dezembro, as atividades começaram normalmente com a dança dos dedos e dos pulsos ao som de música alegre e natalícia, uma vez que a proposta era a realização de presentes de Natal para oferecer a uma pessoa que quisessem, desde um familiar ao cuidador.

“É o reavivar do mapa afetivo através da dança e da realização destes presentes” que, neste caso, eram placas de cera de abelha que transformavam em velas, depois eram embrulhadas em envelopes construídos com papel ilustrado vindo de livros antigos que a coreógrafa vai recolhendo e guardando ao longo do tempo, sendo que ainda havia flores para colorir e decorar os embrulhos. Também houve decoração de caixas de fósforos com papel e cola.

A entreajuda está sempre presente, pois quando uma pessoa “só tem uma mão ativa ou os dedos fraquinhos” há sempre outra para auxiliar. Cada atividade é também uma oportunidade de comunicação verbal. “No caso das velas, há a vela que cheira a cera e a abelha. Podemos falar do mel, do trabalho das abelhas e do trabalho do campo”, exemplifica Madalena Victorino. “É uma porta de entrada para a conversa.” Por esses dias, houve também música ao vivo com imensa gente a cantar canções alentejanas, “gerando uma atmosfera de alegria e participação, e é isso que é importante”, frisa. Para assegurar “que aquelas salas adormecidas são grandes ateliers de idade maior muito alegres”.

SUMMER BOWING
Neste projeto, a arquiteta Clara Queiroz Lopes visitou a Lavrar o Mar, e cerca de 15 adolescentes da Índia, Bangladesh, Nepal e China criaram plantas de casas e depois deram corpo às suas ideias com areia da Praia da Amália, no Brejão. “Construímos também um abrigo com canas, pedras e saris: uma tenda onde descansámos e comemos durante esses dias de calor e sal”. Segundo a Cooperativa, o projeto surgiu “como resposta ao isolamento que a maioria dos adolescentes sente durante as férias, pela dispersão da população neste território e falta de serviços de transporte”.

Partilhar artigo:

ASSINE AQUI A SUA REVISTA

Opinião

BRUNO HORTA SOARES
É p'ra hoje ou p'ra amanhã

PUBLICIDADE

© 2025 Alentejo Ilustrado. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.

Assinar revista

Apoie o jornalismo independente. Assine a Alentejo Ilustrado durante um ano, por 30,00 euros (IVA e portes incluídos)

Pesquisar artigo

Procurar