Publicado em 1904, “Através dos Campos”, de José da Silva Picão, é um documento central para se compreender de que se fala quando se fala da cozinha dos ganhões. A começar, claro, pelo que é isso dos ganhões. Conta Silva Picão que entre a “criadagem permanente” que servia nas herdades se incluía um grupo empregue “no amanho das terras, acarretos, eiras, desmoitas e outros trabalhos, com exclusão das ceifas e gadanhas”, englobando a ganharia, os carreiros ou almocreves e a “carraça”.
Liderados pelo “maioral das mulas”, os carreiros ou almocreves trabalhavam com as parelhas de muares “nos labores do carro e arado”. A “carraça” era, basicamente, composta por “gente menos válida”, isto é, rapazes e velhos que se encarregam dos “afazeres de pouca monta”. Enquanto aos ganhões, “em número indeterminado”, estava entregue todo o trabalho da lavoura, à exceção das ceifas. “Topa a tudo por assim dizer”. O chefe da ganharia era o abegão. O seu auxiliar era o sota, nome que em bom português quer dizer “subalterno”.
O autor fez as contas à “criadagem permanente” das herdades alentejanas. A coisa não andaria longe destes números: “um guarda de herdades, um ou dois carpinteiros, um abegão, um sota, dois boieiros, um cozinheiro, um amassador, quatro a seis carreiros, 10 a 15 ganhões, um hortelão, um tratador de cavalos, e um paquete”. A que se somavam ainda os ganadeiros, aqui se incluindo o maioral de ovelhas ou de porcas, o vaqueiro e o eguariço que, como se adivinha, tratava das éguas.
Nem todos os ganhões “valiam” o mesmo, pois eram pagos “em proporção com a importância de encargo”, com os preços a serem ajustados antes do início das campanhas. “Antigamente”, escreve Silva Picão, “todos se acomodavam sem preço, sujeitando-se ao que os lavradores fizessem no fim. Hoje adotam-se outras normas mais racionais. Ou se acomodam a preço feito ou se convenciona pagar e receber pelo maior que se abra de entre os das lavouras vizinhas”.
Só o abegão lhes dava ordens. Eram os “moços da lavoura”, a quem também competia fazer as cavas [revolver a terra] e tratar da eira. Ao conjunto chamava-se ganharia ou “malta”. Escreve o autor: “Por vezes figuram na ganharia rapazes adolescentes de 14 a 16 anos, se o serviço é de molde a tais principiantes. Mas esses galuchos só se consideram ganhões depois de lavrarem ‘de efetivo’ toda a época de uma sementeira outonal”.
Concluído o trabalho – “já fiz uma sementeira!” – era como se dissessem: “Agora sim que sou gente!… recebi a alternativa de ganhão!”. Havendo, entre eles, duas categorias: os “de pensão” e os rasos, sendo estes últimos “a massa anónima das centenas de indivíduos que se sustentam das herdades”. Dito de outra forma: “O ganhão raso é simplesmente máquina de trabalho, para que só se exige robustez e um bocado de compreensão. Ganha pouco em relação aos que o mandam, mas não se sente assoberbado por incumbências difíceis. Trabalha se o mandarem e fiscalizarem: se o deixarem, como não tenha brio excecional, mandreia à grande e sem escrúpulos”.
Quanto à comida, propriamente dita, comecemos pelo pão. Ou melhor, pelos marrocates [pão de centeio], em cujo preparo era necessária a máxima cautela. “Sabe-se que em o marrocate sendo ruim, os ganhões só lhe comem a côdea, inutilizando-lhe o miolo, de que chegam a fazer bolas que espetam nos chavelhos dos bois, como protesto de justo e insofrido ressentimento”, assinala o autor de “Através dos Campos”.
As refeições do dia começavam cedo, em particular no outono, tempo da sementeira. “Vá de levantar e calçar”, dizia o abegão pelas três da madrugada, ao bater à porta onde os ganhões dormiam. Segue-se o almoço, normalmente uma açorda com azeitonas.
“Da clássica açorda alentejana”, escreve Silva Picão, “cujo caldo o abegão prepara num instante, lançando a água a ferver em cachão sobre os barranhões, onde o cozinheiro depôs os temperos – azeite e sal pisado com alho, poejos ou coentros e pimentão. Escalda- do o azeite, prova-se, corrige-se a água do sal, e, pronto, está o caldo feito, exalando o cheiro ativíssimo dos temperos”.
O relato é expressivo. O caldo, a ferver, é então colocado em “alguidares” sobre as mesas. “Ao almoço”, brada o abegão, num grito que em “madrugadas serenas”, é ouvido a dois quilómetros de distância. Os ganhões entram, “tiram os chapéus e assentam-se à mesa”. Cada um puxa da sua navalha para migar o pão, que amolece no caldo. Ouve-se “com Jesus”. E todos começam a comer, “dos barranhões mais próximos, num silêncio profundo, em que só se ouve o ruído das colheres de lata e de chavelho, quando tocam no vidrado dos alguidares”.
Seria demorada a refeição, não só o almoço como as seguintes. “O homem do campo tem por hábito comer devagar, aguardando que a comida arrefeça. Não lhe agrada quente, pela preocupação de que lhe estraga os dentes. E o certo é que quase todos os possuem magníficos, não lhes dispensando cuidados”.
Cada alguidar de açorda dará para um grupo de quatro a seis ganhões, sendo que cada homem apenas deve colocar a colher “no sítio onde encetou”. Repare-se que, ao contrário das açordas de hoje, Silva Picão não fala na existência de bacalhau ou de pescada. Apenas azeite e sal pisado, alho, poejos ou coentros e pimentão, agora pouco usado no que às açordas diz respeito.
Almoçam enfim. O abegão, vendo que todos deixaram de comer, dá o sinal de retirada, pondo-se de pé a despejar a mesa com o auxílio do sota. Os ganhões saem para a rua, põem o chapéu e atiram fora com os caroços das azeitonas. Depois, vai de cigarrada, em volta da chaminé, na casinha. Um instante apenas, a pretexto de se munirem dos apeiros ou de quaisquer ferramentas que tenham de levar para o trabalho”.
É no outono, época das sementeiras, que se “madruga” mais cedo. No resto do ano, o almoço acontece pela alvorada. A ementa é a mesma, açorda, exceto nos dias “de nomeada”. Segue-se a merenda, já no campo de trabalho, por volta do meio-dia, ou um pouco antes. “Um queijo para cada homem, com o pão que tiver na vontade, pouco ou muito que seja”. Os queijos eram levados num taleigo, “aberto à ganharia”. Cada um ficava com o que lhe calhava, acompanhando-o com o marrocate.
“O tamanho e qualidade dos queijos dão origem a comentários. O ganhão, que é desconfiado, persuade-se de que tirou dos mais pequenos, invejando a sorte do companheiro próximo, que tem um que se lhe afigura maior e de melhor aparência que o seu”. Ao silêncio da refeição segue-se um cigarro e alguma conversa antes do regresso ao trabalho.
Ao anoitecer, cumprido mais um dia, é tempo da ceia. “Consta de olha [caldo] de legumes com batatas ou hortaliças, adubada com toucinho ou azeite, conforme os dias da semana. Nas olhas com toucinho, também se usa couve emvez de legumes”.
Na “Carta Gastronómica do Alentejo” (2012), Joaquim Pulga registou numa entrevista feita a Mariana Arruda, em Serpa, a receita de um caldo de toucinho que era usual nos meses frios e que constitui um registo do que seriam estas “olhas” dos ganhões: numa frigideira regada com um fio de azeite, frita-se o toucinho de salgdeira, que depois é retirado. Numa panela, com a gordura resultante da fritura faz-se um refogado com a cebola às rodelas, e os poejos migados. Junta-se um pouco de água e deixa-se levantar fervura. Deitam-se as batatas às rodelas e deixam-se cozer. Com a farinha e o vinagre e um pouco de água se necessário faz-se um polme ralo. Quando as batatas estiverem cozidas, escalfam-se os ovos e junta-se o polme para engrossar o caldo.
Escreveu-se em cima que a utilização do toucinho ou do azeite era feita “conforme os dias da semana”. Explicando melhor: os domingos, terças e quintas-feiras eram dias de boia, isto é, de toucinho; nos restantes dias era usado azei- te. “Além do cozido”, diz-nos Silva Picão, “há, para cada homem, o conduto de meio queijo, ou azeitonas à franca”, que é como quem diz, “à vontade”. Se ao domingo não houvesse lavoura, ou seja, sendo dia de folga, a maioria dos ganhões trocava os montes pelos povoados, entretendo-se em “bailaricos e coisas semelhantes”, pelo que a boia era mudada para segunda-feira.
Na maioria das casas agrícolas, os pesos e medidas eram idênticos para todos os homens: “três decilitros de legumes aproximadamente e dois a três centilitros de azeite, ou 100 a 115 gramas de toucinho. Havendo mistura de batatas, os legumes entram em menor quantidade”.
Nascido em Santa Eulália, descendente de abastadas famílias de lavradores do concelho de Elvas, José da Silva Picão é autor, em “Através dos Campos”, de um dos “grandes trabalhos etnográficos da época”, nas palavras de Leite de Vasconcelos, responsável pela criação do Museu Etnográfico Português, em 1893. Repare-se neste pormenor. Terminada a ceia, conta o autor, “o abegão, ou se levanta imediatamente sem mais cerimónias, para que os outros retirem, ou mantendo o costume antigo, outrora de rigoroso uso, junta as mãos e diz: demos graças a Deus”. A observação prossegue: “À voz de graças todos põem as mãos e ninguém deixa de rezar, pelo menos aparentemente”.
No verão, os horários das refeições eram diferentes, como também mudavam as ementas. O almoço acontece pelas sete da manhã, não pelas três, e consistia de “sopas de cebola, tendo por conduto azeitonas e meio queijo para cada homem, que o pode comer ou arrecadar, como tiver na vontade”. Na já referida “Carta Gastronómica do Alentejo”, Lino Mendes (nascido em 1935) deixa uma receita da sopa de cebola, como se fazia em Montargil, no concelho da Ponte de Sor.
Ora tome nota: “Corta-se a cebola às rodas grandes e tempera-se com salsa, louro, um dente de alho, uma colher de colorau e um decilitro de azeite. Leva-se tudo ao lume a repassar até a cebola ficar transparente. Entretanto junta-se-lhe rodas de batata e postas de bacalhau a gosto e deixa- se refogar bem”. Seria o bacalhau um “acrescento” mais urbano e menos usual na “casa da malta”. Acrescenta-se água, um pouco de vinagre, uma chávena de arroz e deitava-se o caldo sobre fatias de pão.
Ao jantar, que se mantinha pelo meio dia, o toucinho poderá ser substituído por morcela, ou carne fresca de badana, uma carne de menor qualidade que Silva Picão diz nem sempre ser sinónimo de ovelha magra. “A carne de badana é apreciadíssima pelos criados de lavoura, preferindo-a ao toucinho e à morcela. Quando lha apresentam, reservam e guardam cuidadosamente toda que lhes sobeja, para a comerem depois, a qualquer hora disponível, como petisco saboroso e reconstituinte”.
Cumprida a obrigatória sesta e concluídos os trabalhos do dia, aos ganhões era então servida a merenda ou ceia, “quase sempre de caspacho, acompanhado de azeitonas, ou de metade de um queijo para cada homem. Para variar também se usa substituir o caspacho por batatas cozidas, temperadas de azeite e vinagre”. Por ser tempo dela, não faltaria uma talhada de melancia. “Se abunda, franqueia-se à larga, para todos se abarrotarem à vontade; se escasseia, dá-se por parcimónia”. Uma “talhadinha” para cada ganhão, “o suficiente para provas de molhar a goela e todos se fazerem novos”. Laranjas, ameixas, melão, figos também apareciam, ainda que a espaços.
CACHOLA E MIGAS COM TORRESMOS
Ao longo do ano havia “rancho” reforçado naqueles que Silva Picão define como dias de “nomeada”. A começar pelos da matança do porco: “Nas manhãs dessa faina, todos que a desempenham bebem o seu copito de aguardente, a pretexto de aquecerem o estômago e matarem o bicho”. Concluída a tarefa, poderiam “regalar-se” à vontade com “boas talhadade chouriço e morcela frita, acompanhadas de azeitonas e vinho”, sendo que a “superioridade dos puxativos” estimulava os ganhões “a encherem e emborcarem os copos com frequência, pondo-se todos meio tachados e alguns a cair”. Era aqui que entravam a cachola e as migas com torresmos, “comidas gordas, de avariar o estômago a muito boa gente”.