Documentos inéditos revelam novas facetas de José Rodrigues Miguéis

Uma nova biografia de José Rodrigues Miguéis, que recupera a memória do escritor nos 45 anos da sua morte, revela aspetos desconhecidos da sua vida e propõe uma leitura renovada da sua obra e ação política, graças a documentos inéditos.

Da autoria da investigadora Teresa Martins Marques, “Nos passos de José Rodrigues Miguéis — Uma biografia como um romance” propõe-se resgatar do esquecimento o escritor e “figura cívica incontornável do século XX português”, o autor de “uma obra notabilíssima, mais viva” do que a dos seus contemporâneos, através de um modelo narrativo original e revelações oferecidas por testemunhos, cartas inéditas e documentos raros.

“Desde a edição das ‘Obras Completas’, que dirigi no Círculo de Leitores, entre 1994 e 1996, o autor foi progressivamente caindo no esquecimento, devido aos processos judiciais sobre direitos de autor, que opõem a neta de Miguéis e uma senhora que tratou da viúva do escritor, e que teve como consequência atrasar as reedições da obra”, afirma Teresa Martins Marques.

A publicação desta biografia visa justamente contrariar essa tendência e assinalar os 45 anos da sua morte, que se completam a 27 de outubro, acrescenta a investigadora, que é a representante legal da neta americana do escritor, Monica Miguéis (a única neta).

O livro é apresentado como “uma biografia como um romance”, porque adota um formato original, encenando um longo diálogo entre José Rodrigues Miguéis e a cientista Maria de Sousa (1939-2020), sua amiga e confidente durante os últimos dez anos de vida. 

Maria de Sousa “conviveu de perto comigo contando-me muitos episódios da vida de Miguéis. Foi esse manancial de conversas que me permitiu encenar a entrevista”, refere Teresa Martins Marques.  Embora literária na forma, a obra assenta inteiramente em fontes documentais, como confirmam as quase mil notas de rodapé. 

“Nada é inventado ao longo das 700 páginas”, garante a autora, corroborada por Onésimo Teotónio de Almeida, no prefácio da obra, que distingue esta “inovadora maneira de biografar” da chamada “biografia ficcionalizada”.

“Não é de modo nenhum essa a abordagem desta ‘biografia como um romance’, precisamente porque todos os elementos, dados, factos e até afirmações foram retirados de documentos, e apenas a narrativa, isto é, o modo de entrelaçá-los constitui o elemento romanesco”, acrescenta o escritor.

Teresa Martins Marques acredita que este estilo torna a obra mais acessível ao público geral, destacando o “discurso oralizante” dos diálogos e a estrutura intimista inspirada nos diários encenados de Miguéis, reconstruídos a partir da sua correspondência pessoal.  Esta forma de escrita permite ainda destacar o temperamento do escritor, muitas vezes exagerado nas apreciações políticas e literárias, “vendo ‘complots’ onde eles não existiam”, salienta.

Entre as revelações trazidas pela biografia, estão episódios familiares desconhecidos, nomeadamente pormenores da infância e da relação entre os pais, “que lhe agudizaram traumas”, afirma a biógrafa, contando que o pai era 11 anos mais novo do que a mãe – facto incomum na época -, e que viveram 13 anos na mesma casa sem se falarem. 

Outro dado novo diz respeito à primeira mulher do escritor, Pecia Cogan Portnoi, de quem “nada se sabia”, uma judia originária da Bessararábia, que ele conheceu em Bruxelas, doutorada em Pedagogia, mas “muito perturbada”, que “desenvolveu um ódio ferrenho em relação à mãe de Miguéis”, proibindo-o de a ver, perseguindo-o nas ruas e fazendo-lhe cenas públicas e privadas”.

A ida de José Rodrigues Miguéis para os Estados Unidos, em 1935, foi “sobretudo uma fuga a esta mulher”, para além do exílio político, face à sua oposição ao Estado Novo.

A paternidade da filha adotiva, até agora envolta em mistério, é igualmente abordada à luz de novos documentos. A obra expõe ainda o afastamento do escritor do comunismo e a sua posição crítica em relação ao meio literário português, revelada em cartas trocadas com o diretor do Diário Popular Jacinto Baptista.

Ou seja, além da vida pessoal, a obra aborda também a ação pública e política de José Rodrigues Miguéis, que foi um dos grandes ativistas da Seara Nova desde a sua fundação, em 1921, e um convicto bolchevique entre 1930 e finais dos anos 1940.

Já nos Estados Unidos, onde viveu o resto da sua vida, tendo-se naturalizado americano em 1942, participou ativamente na mobilização da comunidade luso-americana durante a Guerra Civil de Espanha, angariou fundos que canalizou para Bento de Jesus Caraça, em Lisboa, e manteve um olhar crítico e combativo sobre a ditadura portuguesa. 

Após o 25 de Abril, já muito doente, continuou a intervir politicamente através da literatura, nomeadamente com obras como “O Pão não Cai do Céu” e “O Milagre Segundo Salomé”, este último “criticamente silenciado e incompreendido”, diz a autora.

Teresa Martins Marques admite que, apesar de estudar a obra de José Rodrigues Miguéis há 35 anos e de a conhecer bem, “a imagem do homem após a biografia é totalmente nova”.

“Miguéis sempre se queixou dos críticos que não percebiam que a sua obra era toda ela autobiográfica. Mas a verdade é que não tínhamos dados biográficos para o concluir. Agora já temos, através da correspondência inédita que revelo, em que vemos assomar o homem na obra”.

No entanto, contra o “silêncio crítico”, emergia uma bibliografia passiva “extensa”, refere a biógrafa, exemplificando com Jorge de Sena, que tinha o autor de “A escola do Paraíso” em “alta conta”, tendo escrito sobre ele: “Eis que, enfim, temos (e já tínhamos) em Portugal um escritor profissionalmente consciente da sua dignidade até à medula dos ossos, civilizado e culto narrador nato”.

A própria Teresa Martins Marques questiona-se “como é que [José Rodrigues Miguéis] superou tanta doença, tanta hipocondria, tanta falta de dinheiro e ainda assim conseguiu escrever uma obra notabilíssima, mais viva que a dos seus coetâneos”.

Apesar de ter nascido com o século XX, em 1901, Miguéis continua atual – considera –, porque era um homem que “patenteava valores avançados para o seu tempo, no que respeita à visão da mulher”, tendo sido um dos primeiros autores portugueses a dar-lhes voz, de forma consciente e politicamente comprometida. 

“Defensor convicto dos ideais da democracia e da liberdade”, estendeu-os ao universo feminino com um olhar progressista e solidário, chegando mesmo a questionar: “Haverá escritor português vivo que tenha criado e alimentado, ainda que mal e em tão curta obra, tantas e tão variadas figuras de Mulher, sem nunca procurar rebaixá-las, diminuí-las ou condená-las?”.

Miguéis afirmava que o seu lema era “Mulheres do mundo inteiro, uni-vos”, e para dar prova disso garantia: “Sempre tomei o partido delas contra os seus opressores, fossem eles meus amigos [ou não].”

A biografia incorpora ainda ensaios de análise literária, apresentados com rigor académico mas linguagem acessível, revela a autora, que recusa “o hermetismo” e segue os passos de Miguéis, “que detestava a escrita hermética dos anos setenta, a que chama pejorativamente ‘escrita logarítmica’”.

A biógrafa cita Lídia Jorge, uma das nove personalidades convidadas a ler a obra antes da publicação, para quem “Teresa Martins Marques consegue resgatar do esquecimento uma das vozes mais sólidas e originais da moderna Literatura Portuguesa. E esse ato de justiça é um consolo”.

“Nos passos de José Rodrigues Miguéis — Uma biografia como um romance”, publicada pela Âncora Editora, vai ser lançada no sábado, dia 21, pelas 15h00, na Feira do Livro de Lisboa, com apresentação da escritora Teolinda Gersão.

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