Na casa de Galopim de Carvalho, em Évora, há uns bons 80 anos, sentavam-se à mesa de Natal a mãe e o pai, mais seis filhos, um deles o próprio Galopim, e ainda uma tia viúva que os ajudou a criar. “Foi assim o tamanho do meu Natal de criança e adolescente”. Essa mesa, lembra o professor jubilado da Universidade de Lisboa, tinha duas abas que era necessário abrir para a ocasião, mas mal chegava para acomodar “tanta gente, tantos braços e tantas bocas a comer, tanta cadeira a gemer”.
Conta Galopim de Carvalho que o seu pai se referia a ela como a “mesa dos 60 pés” – sendo 18 das pessoas que ali se sentavam, 36 dos bancos e cadeiras e os seis da mesa propriamente dita. Pela Consoada era “vestida” com toalha bordada e a ementa, “nunca repetida noutras ocasiões”, marcava o “dom festivo da quadra”.
Falamos de “carne de porco magra e entremeada, frita em banha, depois de barrada com alho e massa de pimentão, acompanhada com migas de batata sabiamente moldadas na tigela de fogo até ficarem num rolo com casquinha dourada, estaladiça”. Pela mesa passava ainda rim de porco salteado em banha, “com muito alho, louro e uma golada de vinagre” e os doces: arroz-doce, manjar branco e, sobretudo, enxovalhava, “um bolo feito com massa do pão, perfumado de canela”.
Gastrónomo por paixão e vocação, Galopim de Carvalho conhece bem a receita dessa enxovalhada, feita com um quilo de massa de pão de trigo que a mãe o mandava ir comprar ao padeiro do bairro. A essa massa, registou, juntam-se quatro ovos, duas colher de fermento, meio quilo de açúcar (de preferência amarelo), um pouco de leite, 200 gramas de manteiga e canela em pó. Uma vez amassado, coloca-se o preparado num tabuleiro que irá ao forno uns bons 45 minutos – os primeiros 10 à temperatura máxima. “Experimenta-se com um palito para se verificar se este sai seco. Se assim for, a enxovalhada está cozida”.
Jornalista e responsável pelo programa “À Mesa” (TSF), António Catarino nasceu em Cuba, no Baixo Alentejo. “Aí vai a ceia de Natal”, diz-me num email em resposta ao desafio de recordar as tradições lá de casa. E a ceia é simples: carne de porco assada. Já o almoço do dia 25 fazia-se com perna de borrego ou lombo de porco, sendo que nas famílias mais abastadas, “impante, o peru recheado era o rei da mesa”. Depois não faltaria arroz-doce e broinhas de amêndoa e gila.
“Era o Natal à mesa do Baixo Alentejo no início da década de 60 do século XX. Bem diferente dos tempos da globalização bacalhoeira e da avalancha de couves e batatas cozidas, tradicionais noutras latitudes mais nortenhas. E sem os fritos no capítulo doceiro, pois integravam – como hoje – os manjares carnavalescos”, sublinha António Catarino. “O país mudou muito e houve tradições assimiladas pelo rolo compressor dos novos hábitos alimentares e do poder comercial”.
Nesses tempos, escreve Maria Antónia Goes [em “Cozinha Tradicional Alentejana – Memória dos Temperos”], “não havia Pai Natal e os poucos presentes que as crianças e só as crianças recebiam eram do Menino Jesus e como Ele só chegava durante a noite, encontrávamos os presentes de manhã, na chaminé”.
Nascida em 1943 em Alvito, Maria Antónia Goes regista na mesma obra: “Não me lembro do jantar da véspera de Natal ser importante. Quem ia à Missa do Galo ceava no regresso – chocolate quente com fatias douradas e, mais tarde, bolo-rei”.
Já o almoço do dia 25, esse sim, era momento de convívio à mesa. Filha de uma família de proprietários rurais, nesse almoço não faltava sopa da panela e peru assado. “Sempre achei que só faziam a sopa da panela porque, no fundo, ninguém gostava do peru. Só do peito. Passava do almoço para o jantar, servia-se frio no dia seguinte e acabava em croquetes”, registou a escritora, com vários livros publicados sobre gastronomia alentejana.
Por peru entendam-se os “soberbos pretos, criados a bolota, ao ar livre durante meses e meses, saudáveis e rijos que morriam de bêbados com a melhor aguardente da casa”. Na sua eram servidos em “salva de prata com as pernas enfeitadas com franjas douradas e rodeados de rode- las de laranja”. Desabafa a autora: “Tanta honra para tão pouca glória”.
À semelhança do que sucedia com as famílias mais pobres, o manjar branco e as fatias douradas também tinham lugar à mesa de Natal nas casas abastadas, mas juntava-se-lhes pudim de amêndoa, doces de ovos, o bolo de gila e o bolo-podre, feito com azeite e mel.
Pedi ao chef José Júlio Vintém [Restaurante Tombalobos, Portalegre] a descrição de uma ementa de Natal típica do Alto Alentejo. “A tradição é vasta e algumas vezes diferente [de terra para terra], mas o polvo não é muito tradicional”.
Ao contrário das couves com bacalhau e da sopa de cação. Depois poderá ainda haver o tal peru recheado, borrego no forno ou lebre com feijão, não fosse esta uma época de caça. No que à doçaria diz respeito, José Júlio Vintém não se esquece de rabanadas, filhoses e azevias, a que acrescenta lampreia de ovos ou torrão real.