Francisco Sabino (ensaio): “Sobre a natureza dos votos perdidos”

Ciclicamente, ao ritmo do calendário eleitoral, vários especialistas e os ditos fazedores de opinião, aparecem no espaço público debatendo a incongruente situação da representatividade regional, que não acautela e/ou corrige (como?) o galopante desequilíbrio demográfico e, como tal, também eleitoral, apontando, de forma quase unânime, para a necessidade da revisão do sistema eleitoral.
Francisco Sabino* (texto)

Algumas propostas de revisão têm sido tornadas públicas: umas vindas de organizações cívicas, outras oriundas do meio académico e, outras ainda, propostas por partidos políticos que as esgrimem nos debates parlamentares, com os resultados que se conhecem, seguindo o velho lema de que em equipa ganhadora não se mexe. Leia-se, aqui, equipas ganhadoras, PS e PSD, basicamente e até ver.

E andamos nisto desde o início do século, que é como quem diz, desde que os censos começaram a dar notícia, com maior evidência, da desertificação do interior do território, com um claro favorecimento dos concelhos do litoral que contam hoje com mais de 77% da população eleitoral do Continente e elegem 170 dos 216 deputados, o que corresponde a 79% do total de eleitos.

Mas, se bem observarmos a realidade, podemos constatar que essa assimétrica distribuição é ainda mais acentuada nas grandes áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, que apropriam 126 dos 216 deputados nacionais; ou seja, apenas quatro distritos (Lisboa, Setúbal, Porto e Braga) representam politicamente 60% do território continental, sendo que os outros 14 círculos eleitorais repartem entre si os restantes 40% dos eleitos.

Sendo certo que existindo consenso para alterar o sistema eleitoral atual, com esta realidade demográfica e eleitoral, a tarefa parece hercúlea. Contudo, como alguém já disse, se não aspirarmos a obter o impossível, mas em esgotar o campo do real, alguma reforma se há de encontrar que possa concitar o acordo de todos e almejar o necessário acordo parlamentar para a sua aplicação.

Dado o melindre da situação e o que parece mexer com os interesses dos partidos mais votados/beneficiados, essa reforma não será certamente uma realidade para amanhã. Mas que diabo, andamos nisto há 20 anos!

Mas o objetivo principal deste escrito é o de analisar a natureza dos votos ditos perdidos, e que eu me atrevo a pensar que não o são de todo, apesar de algumas mentes o afirmarem e quantificarem até. Peguemos no caso dos círculos distritais alentejanos, exposto nos quadros que seguem, onde se regista os valores da votação de 10 de março de 2024. Votaram 227.043 dos 345.608 eleitores, ou seja, 66% do total de inscritos, que elegeram os oito deputados que cabem à região.

Contudo, este valor pode ser lido ainda de forma a dizer-nos que, daqueles eleitores, 170.802, contribuíram efetivamente para a eleição dos tais oito deputados, e isso diz-nos que um pouco mais de 75% dos votos entrados nas urnas foram eficazes, contribuindo para essa eleição. Por outro lado, 56.251 votos não almejaram eleger qualquer deputado nos três círculos alentejanos, o que representa um pouco menos de 25% dessa desejada eficácia eleitoral.

Estes valores totais repercutem o que se passou nos círculos alentejanos, havendo a registar variações, ainda assim com algum significado inter distritais, uma vez que as diferenças se situam sempre acima dos cinco pontos percentuais, sendo de notar que o círculo eleitoral de Portalegre foi o que melhor desempenho registou, ao consignar 82% dos seus votos na eleição dos seus dois deputados. Beja 70% de eficácia nos seus votos e Évora um pouco mais, com 75%.

Dito isto, a pergunta que pode ser colocada é a seguinte: podem os votos que não elegeram deputados na região e nos distritos serem considerados votos perdidos? Em boa verdade, não creio. Vejamos os números: 5730 foram votos brancos e nulos. Sempre os houve, e sempre os haverá. E as percentagens são reduzidas, nem apresentam dispersão regional. Brancos e nulos podem ser captados para a eleição efetiva de deputados? Podem. Mas, e os que não se mobilizam são votos perdidos? Não! Fazem parte intrínseca do sistema, e são até bons indicadores da saúde do mesmo.

Quanto ao voto em outros partidos, o que dizer? Olhemos para os valores: em Beja 20.997 eleitores votaram noutros partidos, ou seja 27% dos votantes preferiram outros partidos, porventura os da sua militância, sabendo inclusive que o seu voto não iria contribuir para eleger deputado algum pelo distrito.

Pergunte-se então: por que razão hão de ser estes votos considerados perdidos? Por não terem contribuído diretamente para a eleição de um dos três eleitos? Então estas pessoas que decidiram por sua livre vontade e arbítrio, optar por outras soluções que não as que os partidos melhor “posicionados” apresentaram, contribuindo desta forma para uma maior expressividade democrática do sistema, são contadas como perdidas por não terem, deliberada e conscientemente, optado por votarem útil num dos partidos com óbvias possibilidades de eleição?

Não creio que essa seja a melhor forma de tratar as margens democráticas do sistema. Qualquer que seja o projeto de reforma que venha a ser adotado, estas “marginalidades” terão de ser sempre consideradas e até acauteladas sob pena de termos um sistema que se aproxime do voto por decreto, de tão má, mas ainda tão fresca, memória.

Atente-se na repartição distrital destes votos, considerando apenas os quatro partidos mais votados mas que não conseguiram eleição de deputados. Em Beja, dos 20.997 votos registados, 11.570 foram votos na CDU, 3816 no Bloco de Esquerda, 2227 na Iniciativa Liberal, e, finalmente, 1773 no Livre. Podem estes votos serem considerados perdidos? Não creio. Podem ser considerados uma reserva estratégica para eleições futuras, mas isso são contas de outro rosário, que caberá aos partidos atingidos por esse “fenómeno” acautelarem a forma e os conteúdos das mensagens.

Por exemplo, a CDU teve 24.945 votos na região e não elegeu nenhum deputado, e contudo, dificilmente estes votos podem ser tidos como perdidos; nem política nem filosoficamente falando, pelas razões acima aduzidas. São votos militantes que valem tanto quanto aqueles que elegeram deputados. Outro resultado a CDU teria com este mesmo resultado, se os votos fossem contados num círculo regional que englobasse os três distritos e os concelhos do litoral alentejano que contam para eleger no círculo de Setúbal. Mas isso ficará para a futura reforma eleitoral acautelar.

Creio que considerar os eleitores nestas condições como votantes perdidos é uma postura egocêntrica que resulta numa absoluta falta de respeito por aqueles que ousam manter a sua coerência militante e ou partidária. Trabalhe-se, isso sim, para se diminuir a abstenção e estes “votos perdidos” serão significativamente reduzidos, pois o sistema aproveita melhor quanto maior for o nível de participação.

Um exemplo do que que se afirma resulta de uma comparação de dois atos eleitorais em que os níveis de abstenção são distintos: o das legislativas de 1979, onde a abstenção foi de 18%, e as legislativas de 2024, com uma abstenção de 40%. Nas legislativas de 1979, os votos que não serviram para eleger deputados foram de 268.930, que correspondendo a uma taxa de desperdício de 4,75%. Nas de 2024 esse valor situou-se nos 619.948, ou seja uma taxa de 9,58% de votos dispersos, chamemos-lhe assim.

Se regionalizarmos estes desperdícios, o contraste entre os comportamentos do país nestes dois atos eleitorais aparece ainda mais impressionante. A regionalização que serve de base à comparação dos resultados, é a que resulta da agregação dos distritos nas atuais NUT II, correspondentes às áreas de intervenção das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional.

Vejamos no quadro seguinte como estes votos se distribuíram comparando os dois atos eleitorais:

Como alguém disse aqui há um bom par de anos: os dados estão lançados. Meditemos!

(*) Sociólogo. Os quadros e os valores apresentados são de elaboração do autor, e apenas ele responsabilizam.

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