Há dias assisti à exibição do documentário de Jorge Murteira com o título “Uma Ideia Nunca Abala”, na sede da Cooperativa Operária Portalegrense, fundada há 126 anos por operários corticeiros. Foi encomendado ao autor pela Fundação Robinson, supostamente para que viesse a fazer parte do espólio de um centro interpretativo, na ideia de projeto que era a da musealização do espaço e do recheio industrial da velha “fábrica da rolha” ou “da cortiça”, no dizer do povo, conforme à apropriação do que se entranha no seu viver.
É um documento pungente que retrata os últimos dias de laboração, quando a Sociedade Corticeira já não pagava salários, tinham passado 14 meses. As imagens, os sons e as palavras, recolhidas de forma não intrusiva, acentuam o dramatismo vivido e, sobretudo, sentido por aqueles homens e mulheres que experienciaram o fim da corticeira como se fosse o seu fim, dos seus e da sua comunidade. Só assim se compreende a abnegação e a resiliência de muitos, sem o salário que sustenta e a que muitos poucos soçobraram, com um deles, malogradamente, pondo fim à vida.
O documento é todo ele atravessado pela luta tenaz para que um forte fator identitário e do carácter social local portalegrense, se tal se pode afirmar, perecesse daquela forma. A anquilosada maquinaria é tratada com zelo e até carinho que contraria a mais retinta das teorias de reificação pelo trabalho moderno que tornou os homens simples peças de uma engrenagem.
Era ela que permitia o uso de saberes e de competências que fizeram daqueles operários e operárias os mais lídimos depositários de um trabalho de qualidade, quase manufatureiro ou artesanal, com fama, e procura, em todo o mundo. A ele se apegaram e mais ainda quando perceberam que o fecho da fábrica traria o seu fim, já que as promessas de continuidade por outras vias (como se confirma agora) não iriam adiante.
Suspeito que a carga emocional daquele desfecho, presente até nos testemunhos mais picarescos, inseridos de modo sublime pelo realizador e antropólogo, correspondam também a um sentimento de perda que grassava por Portalegre. Também a Lanifícios tinha fechado pouco tempo antes, arrastando para o desemprego famílias inteiras. Pior do que isso, como na Robinson, muito novos para a reforma e já velhos para iniciaram um novo trabalho, na saudade do que sempre exerceram.
A meu ver os homens e mulheres, verdadeiros protagonistas do documentário, dão uma lição sobre que é o património e cultura imaterial, como está presente e molda a vida de cada um e a de todos. Fizeram-no numa assombrosa postura de dignidade que honra a memória e a tradição industrial da cidade de quase três séculos. Aquelas de que sempre se fará o futuro ainda que pareça que este passado se esvaiu.
No caso de Portalegre é impossível, dado que os vestígios são fortes e substanciais: 20 hectares – 13 da Lanifícios e sete da Robinson – dentro da cidade, ao abandono, e um património suscetível de um poderoso catálogo de arqueologia industrial, deteriorando-se e a saque, ou já completamente levado, só restando as paredes.
Valha-nos a recuperação da velha Fábrica Real para sede do Município. Sobrou pouco. Mesmo muito pouco e que justifica mais uma chamada de atenção dos responsáveis diretos e com poder outorgado, pondo os olhos naqueles cidadãos e cidadãs, com o respeito que se lhes deve.