Houve um tempo, de contornos e circunstâncias irrepetíveis, em que as gerações se renovavam e conviviam na mesma casa, paredes-meias, na mesma aldeia ou na mesma vila. Os avós, os pais e os netos, vivendo num espaço do qual raramente saíam, faziam parte de uma estrutura familiar e comunitária perfeitamente encadeada e definida e as suas existências entrelaçavam-se e dependiam umas das outras. A migração para os subúrbios da capital e a emigração para países como França, Alemanha e Suíça foram as duas razões primordiais que provocaram alterações profundas neste sistema social.
Mais recentemente, resultado da voragem dos tempos modernos, os mais velhos deixaram de ser vistos como transmissores de saberes e de experiência, pontes para a manutenção de uma identidade, e tornaram-se num fardo, um empecilho que impede ou constrange realizações pessoais e profissionais.
Acrescentando-se a tudo isto o aumento da esperança de vida, é fácil concluir que os mais velhos ficam, cada vez mais, entregues a si próprios, esperando pelo seu fim de forma solitária, esquecidos, arredados de uma participação ativa. Quando as respostas do estado social são manifestamente insuficientes, quando os lares, as casas de repouso e os lares para idosos se tornam um negócio que pratica preços incomportáveis para a maioria das pessoas, a qualidade de vida de muitos dos avós deste país é fraca e pouco digna.
A dignidade das pessoas não se revela e não se esgota apenas na existência de um teto, de água, de luz e de saneamento básico. Revela-se e consolida-se, a par de tudo isso, evitando qualquer tipo de desenraizamento, também com a satisfação de uma vertente social e emocional e com o regresso a uma realização pessoal integrada numa identidade comunitária. Na concretização deste importante desígnio, as instituições particulares de solidariedade social (IPSS) têm um papel determinante.
Exemplo disso é a Nossa Terra, constituída em 2009, com sede na Aldeia de Palheiros, concelho de Ourique, que centra a sua atuação no combate à solidão e isolamento dos idosos, dinamizando várias intervenções sociais.
Marta Afonso, diretora desta IPSS, refere que “a proximidade e o contacto direto com os idosos permitiu concluir que há um desejo de envelhecer dentro do seio familiar”. Para evitar um desenraizamento quase sempre traumático, procurou-se encontrar uma resposta que permitisse manter os idosos na comunidade. O primeiro passo foi a cedência, por parte do Município, da antiga escola da Aldeia de Palheiros, entretanto desativada. O segundo foi a candidatura aos prémios da Fundação EDP, que permitiram financiar as obras de requalificação do edifício, criando um espaço onde começou a funcionar o Centro de Apoio à Solidão.
Dentro de uma evolução nem sempre fácil, conta Marta Afonso, “foi feita uma candidatura ao Portugal 2020 e foi implementado o projeto Con- sigo, que prestava os serviços de proximidade em casa dos idosos, com valências nas áreas social, da saúde, da animação, bem como acesso a equipamento e serviços” como a teleassistência, por exemplo.
“A falta da continuação do financiamento, a redução ou até a extinção das equipas multi-disciplinares e a consequente impossibilidade de continuar a dar respostas e a manter vivas as expectativas criadas é um grave constrangimento que está sempre presente e põe em causa a sustentabilidade dos projetos”, refere. Quando um projeto se extingue – e com ele o seu financiamento – a tentativa de manter vivo o serviço através de um pagamento não surte efeito porque “há muita falta de capacidade financeira tendo em conta as baixas reformas dos idosos”.
Outro projeto estruturante foi a criação, em 2017, da Universidade Sénior. Para além do combate à solidão e ao isolamento, “com mais de 100 participantes em todo o concelho, a iniciativa promove a recuperação de saberes e conhecimentos dos mais velhos”. Outra iniciativa, que irá ser divulgada em breve, será “concretizada através de um espaço de saúde e bem-estar, dotado de equipamentos de ginástica, de estimulação cognitiva, de massagens, de terapias várias”.
O projeto mais recente intitula-se CLSD 5G Gerações, e tem como eixos de intervenção o combate à pobreza e à exclusão social das crianças e dos jovens e a promoção da autonomia, envelhecimento ativo e longevidade, com um período de execução de quatro anos.
Marta Afonso sublinha que a Nossa Terra “conseguiu ficar com este projeto devido a uma intervenção muito focada nas comunidades, par- ticularmente junto dos idosos”. A equipa técnica é constituída por uma coordenadora e dois técnicos superiores com qualificação nas áreas das ciências sociais e comportamentais, com competências e perfis adequados ao desenvolvimento das ações.
Marta Afonso e Ana Lúcia Pereira, coordenadora da iniciativa, dizem-nos que para a efetivação dos princípios inerentes a este projeto “há um gestor dedicado a cada caso pessoal que faz um acompanhamento individualizado, em que se procura criar uma resposta integrada para colmatar as principais dificuldades e necessidades”.
Dado que há ainda muitos idosos a residir em locais e montes isolados, a atividade Mais Perto de Si “desenvolve e aplica o princípio de estar mais perto da pessoa, convivendo através da leitura, de um instrumento musical, de uma conversa”. Já a Ativa.Idade “é um espaço de promoção de ações que permitem a participação ativa na sociedade e de promoção das relações sociais, através do desenvolvimento de atividades educativas, culturais, de lazer e desportivas”.
Marta Afonso faz questão de realçar outra atividade incluída neste projeto intitulada Entrelaçar Gerações.“[A ideia é] a dinamização de atividades intergeracionais, para que as crianças percebam que o idoso é alguém com valor e com interesse, e para que elas próprias se tornem pontes para a manutenção de uma identidade comunitária”.
Francisco Ferro, aluno da Universidade Sénior, afirma que tem sido uma experiência inolvidável. “Já muitas vezes me pus a pensar como seria a minha vida aqui nesta aldeia de Santa Luzia, se não fosse a Universidade Sénior. E cheguei à conclusão que seria com certeza uma existência mais triste”. Acrescenta que tem de realçar “o carinho com que temos sido tratados, bem como as disciplinas que fazem parte do currículo”.
Maria Augusta, também aluna da Universidade Sénior, realça que A Nossa Terra tem sido uma mais-valia para a comunidade sénior do concelho de Ourique. Todas as atividades desenvolvidas contribuem para uma maior socialização, principalmente para as pessoas que vivem sozinhas. Para além da estimulação cognitiva, trabalhos manuais, tertúlias, biblioteca, visitas e passeios de lazer. Penso que todos os alunos participam com satisfação e agradecem às colaboradoras que são sempre incansáveis.
TRABALHO NA COMUNIDADE
A associação foi criada em 2009 com o objetivo de combater a solidão e o isolamento da população idosa. Com um trabalho enraizado na comunidade, a instituição tem desenvolvido projetos de proximidade que promovem o envelhecimento ativo, a autonomia e a participação social. Entre as iniciativas destacam-se a Universidade Sénior, o Centro de Apoio à Solidão e o projeto CLSD 5G Gerações, que integram respostas nas áreas social, da saúde e da animação, valorizando os saberes dos mais velhos e reforçando os laços interge- racionais.
Natural da Aldeia de Palheiros, o autor é professor, escritor e cronista