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História. A vida em Estremoz, nas vésperas da Revolução de Abril

A Câmara endividada e com obras por realizar, incluindo a nível de saneamento e arranjo das muralhas, problemas no abastecimento público de água a carecerem de resposta urgente, ainda para mais num ano marcado pela seca, e mobiliário urbano colocado no Rossio com a necessidade de melhorias. Qualquer semelhança com a atualidade é pura coincidências. Há 50 anos, nas vésperas da Revolução de Abril, era assim a vida em Estremoz, “com seus grupos e grupinhos em mal disfarçada guerra fria”. Luís Godinho (texto)

Em 1974 já o “Brados do Alentejo” por cá andava há alguns aninhos. Há precisamente 43. À época era dirigido pelo engenheiro André Tavares, também proprietário, tinha a redação a funcionar no número 40-A da Rua do Almeida e era composto e impresso na Tipografia Ideal. Para contactar com o jornal bastava ligar o número 303, mas, claro, o telefone não era para todos.

No primeiro número do ano, o grande destaque de primeira página recaiu num artigo de Jacinto Ferreira sobre o drama da emigração e dos emigrantes: “a sua simples condição de residentes em terras estranhas, sem conhecimento da língua nem dos usos e costumes, e esforçando-se, em muitos casos, para além da jornada laboral normal, coloca-os na posição de pessoas infelizes”. 

Este número, como todos os outros até ao 25 de Abril, foi submetido aos cortes da Censura. Sendo que o jornal saiu para a rua no dia 6 de janeiro, precisamente o mesmo em que a “colónia estremocense de Lisboa” se reunia na Casa do Alentejo para um almoço de confraternização e de “amor ao torrão natal”, que até já nem estava assim tão longe quanto isso. “Duas horas, apenas, nos separam hoje da capital. E um bom estremocense tanto o pode ser, mesmo no campo ativo das realizações, em Estremoz como em Lisboa. De um pulo se desloca, num ou noutro sentido”, escreve o articulista.

Com a coluna “assuntos locais” preocupada com o “assustador e compungente” número de “mazelas” na cidade – da calçada no Largo 28 de Maio que carecia de intervenção ao estado de abandono dos candeeiros no Rossio, dos bancos que “vão desaparecendo a pouco e pouco e à medida que se aleijam”, sem serem substituídos, à água de abastecimento público paga a 10 escudos por metro quadrado -, o “Brados” dava conta da eleição de Manuel Ferreira para presidente da Sociedade Recreativa Popular, e de Armando Maldonado Cortes para o Recolhimento de Nossa Senhora dos Mártires – Albergue dos Velhinhos. 

Lá vinha o anúncio a recordar aos mancebos a obrigatoriedade de se apresentarem à inspeção militar. A Câmara anunciava a venda, em hasta pública, de lotes de terreno para habitação e comércio. E a inflação atingia uns estratosféricos 15%. Uma breve revelava já ter tomado posse a comissão instaladora da Universidade de Évora, “a quem caberá os passos acelerados para a abertura dos cursos superiores ainda este ano”. No dia 4 de janeiro de 1974 o então ministro da Educação, Veiga Simão, tinha estado em Évora não só a instalar a comissão como a dar posse ao reitor, Àrio Lobo de Azevedo. 

Este tema seria retomado na edição do dia 13 de janeiro, onde se confirmava que nesse ano voltariam a existir corsos carnavalescos na cidade e se informava de uma tragédia em Borba, onde um rapaz de 24 anos, natural de Alandroal e a residir em Vila Viçosa, roubou um carro tendo, na fuga, atropelado mortalmente uma mulher de 67 anos.

“Estremoz está efetivamente doente”, escrevia o “Brados do Alentejo” a 20 de janeiro de 1974, lamentando que à cidade faltassem “forças” para “acompanhar o progresso generalizado do país”. A cidade era, por isso, descrita como “a bela adormecida”, faltando-lhe, entre outros aspetos, “uma salutar renúncia a ultrapassados hábitos de aldeia, com seus grupos e grupinhos em mal disfarçada guerra fria”. Mudam-se os anos, nem todas as vontades mudam.

Bom, por esses dias o jornalista Fernando Pessa tinha passado por Estremoz em trabalho de reportagem para o Telejornal da RTP, tendo-se interessado pela “sala do bombeiro”, instalada na residência de Francisco Joaquim Batista, e aproveitando a oportunidade para “lamentar profundamente que os Bombeiros Voluntários de Estremoz não possuam ainda um quartel à altura do prestígio da corporação e da cidade”. Por falar em televisão, a RTP tinha por esta altura gravado dois programas com o Orfeão Tomaz Alcaide, que se preparava também para “retomar a sua periódica colaboração” com a Emissora Nacional. O Orfeão passara a ser dirigido pelo maestro Manuel Ferreira Patrício, mais tarde reitor da Universidade de Évora, retomando “as suas atividades artísticas, após um largo e forçado período de silêncio, que era motivo de tristeza não só para os seus componentes mas para toda a cidade”. 

O programa de rádio haveria de ser transmitido pela Emissora Nacional em fevereiro desse ano, mês em que a Câmara de Estremoz publicava o relatório de gerência relativo ao ano anterior. Más notícias: “Infelizmente a situação financeira da Câmara já de há anos tem sido má”, lamentava o presidente, Jorge Cortes Maldonado. Em dívida estavam cerca de 10 mil contos, qualquer coisa como 2,5 milhões de euros. Do lado da obra feita, o autarca destacava a eletrificação nas freguesias da Glória, São Domingos e Santa Vitória do Ameixial, o alargamento da rede de esgotos na cidade e em Veiros, a “reconstrução” do Castelo de Évora-Monte e o restauro das ameias na muralha de Estremoz, “assim como as Portas de Évora e Santo António estando em fase de acabamento as de Santa Catarina e dos Currais”.

O PROBLEMA DA ÁGUA
A água era, como ainda é, um problema, ainda que a situação fosse bastante mais dramática: “Fomos forçados, contra a nossa vontade, em adotar medidas restritivas que, sabemos bem, não agradaram à maioria da população, mas temos de reconhecer que desde que existe a rede de distribuição de água nunca o concelho atravessou uma época de seca tão grande e tão prolongada como a deste ano de 1973”. 

Em março, o “Brados do Alentejo” noticiava que o Carnaval de Estremoz tinha decorrido “com a maior alegria e animação”, tendo o tempo ajudado ao desfile dos mais de 30 carros alegóricos e contando-se “por muitos milhares os forasteiros que aqui se deslocaram”. 

No dia 3 desse mês, o jornal destacava ainda a homenagem prestada a Victor Cordon, “um estremocense ilustre”, no “magnífico” salão de festas da Sociedade de Artistas Estremocenses, e informava que um grupo de borbenses já tinha conseguido reunir 3.200 contos, de um mínimo necessário de cin- co mil, para que a vila pudesse ter um cinema, “obra tão importante como necessária”. 

A 9 de março, o concelho era visitado pelo ministro das Obras Públicas e Comunicações, Rui Sanches, que se inteirou dos problemas aqui existentes. A começar, claro, pelo da água, tendo o presidente da Câmara informado que a autarquia, “com as suas magras receitas”, não tinha possibilidade de concluir as obras para o reforço do abastecimento. O ministro prometeu interessar-se pelo caso, mas apenas se chegou à frente com 171 contos para que o Município pudesse adquirir um jipe, “que muito facilitará” a vida aos trabalhadores municipais. 

Dessa visita resultaram mais promessas. Rui Sanches visitou os bombeiros e assegurou uma “vultuosa comparticipação” para a obra do novo quartel: “Mãos à obra e contem com todo o meu auxílio”. Garantiu a atualização do projeto para a construção de uma piscina no parque da cidade. E anunciou que iria esclarecer, “por despacho”, a quem pertencia a Igreja dos Congregados, “uma vez que nos processos nenhum documento existe determinando o real e verdadeiro proprietário”. De concreto, apenas o tal cheque para o jipe e o anúncio da transformação da antiga cadeia comarcã “num museu para guarda e exposição de peças valiosas de caráter religioso, atualmente dispersas e muitas na posse de confrarias ou igrejas sem qualquer valorização pedagógica e cultural e em risco de se perderem”. 

Por esta altura, o jornal dava conta das preocupações com o elevado custo de vida, “[que] se agra- vou com a subida vertiginosa de muitos artigos de primeira necessidade”, como o leite, anunciava a nomeação de Mota Campos como ministro da Agricultura e do Turismo e previa (erradamente) a “morte lenta” das filarmónicas: “Cremos não serem necessários muitos anos para que as duas bandas de música que tanto exaltaram, em épocas não muito remotas, o nome da nossa terra – Estremoz – sejam, efetivamente, impelidas a entregar a alma ao Criador”. Ainda por cá estão, e de boa saúde. 

“PORTUGAL E O FUTURO”

Ainda em março tomou posse a nova direção da Delegação de Estremoz da Cruz Vermelha, presidida por Luís Antunes Batalha, sucedendo a José Correia de Sá. “Não bastam devoção e espírito de sacrifício; é preciso dinheiro para as despesas inevitáveis”, avisava o novo presidente. 

Abril chegaria, e com ele – vejam-se lá os acasos da vida – o general Spínola, nascido na cidade, na primeira página do “Brados do Alentejo”, a propósito da publicação, a 22 de fevereiro, do seu livro “Portugal e o Futuro”, que provocou um verdadeiro terramoto político por nele defender uma solução política e não militar como sendo a única saída para a Guerra Colonial. Trata-se de um artigo originariamente publicado no jornal “O Debate”. Sem condições para se poder “esticar”, o autor refere que “como todos os admiradores do glorioso comandante e governador da Guiné” era seu dever “ler o celebrado livro”, que não nomeia, antes dissertando sobre o episódio do Mapa Cor-de-Rosa, no final do século XIX. “Ao dizer Spínola ‘já então não tínhamos força…’ está a comparar a impotência de hoje à de então”. Clarinho como água.

A última edição antes da Revolução seria publicada a 14 de abril, Domingo de Páscoa, com a primeira páginas a destacar um texto alusivo à época, “Aleluia – Cristo Ressuscitou”, e um outro sobre a Feira de Maio, em Estremoz, que passou a ter nova data, realizando-se na segunda semana. “Há futuramente que persistir nessas datas para habituar todos os possíveis participantes vindos de longe e de perto, pois as constantes alterações de datas prejudicam bastante a valorização que se ambiciona”, alertava o jornal. 

“BRADOS DO ALENTEJO” O JORNAL DA CIDADE

Em abril de 74, o “Brados do Alentejo” publicava um aviso importante (e ainda hoje atual): “Voltamos a dirigir aos nossos prezados assinantes o pedido que nos enviem diretamente a importância das suas assinaturas”. O jornal tinha periodicidade semanal, era composto por seis páginas e custava 35 escudos por ano. Os anúncios comerciais dão-nos pistas preciosas sobre aspetos do quotidiano da cidade. Como o pronto-a-vestir ainda não existia, o alfaiate Mário Rato, na Rua D. Vasco da Gama garantia “vestir bem barato” era na Casa Rato. Já a Casa Jovixama, em São Bento do Cortiço, afirmava vender “as melhores” cerca do mercado, “fáceis de montar e fáceis de pagar”. 

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