João Miguel Tavares: “Vou contando os anos para me pisgar de Lisboa”

Cronista do “Público” e comentador na SIC/Notícias, João Miguel Tavares garante que sempre se sentiu “estrangeiro” em Lisboa e que o objetivo é “pisgar-se” para o interior. Entrevista com um dos mais destacados comentadores políticos, onde se fala de Alqueva e de autarcas, que “já não são do molde de Valentim Loureiro”, de imprensa e, claro, da Serra de São Mamede e de Portalegre, a cidade onde nasceu. Alexandre de Barahona (texto e fotografia)

Comecemos, talvez, por Portalegre...

Nasci em Portalegre em 1973. Sou filho de funcionários públicos, os meus pais trabalhavam os dois nas Finanças, felizmente ainda são vivos e vivem na Urra, uma pequena aldeia ao pé de Portalegre. Cresci lá, e aos 18 anos chegou aquele momento de ir para a universidade. Portanto, sou o típico filho da terra que vai estudar para a grande cidade e depois acaba por ficar. Primeiro entrei emengenharia química no Instituto Superior Técnico, mas passei lá dois anos e meio muito infelizes.

A vocação era outra?

Voltei a Portalegre, pedi às minhas antigas professoras do secundário para me deixarem assistir às aulas do 12.º ano porque decidi mudar de área… na altura não era tão fácil como hoje em dia. Estava numa área científica e voltei atrás, decidi entrar para ciências de comunicação na Universidade Nova. Tinha de fazer exames específicos de português e de filosofia, para me preparar fui seis meses para Portalegre, estudei e tirei a carta de condução. Em ciências da comunicação fui infinitamente mais feliz. Tenho por isso uma grande dívida de gratidão à Escola Secundária Mouzinho da Silveira, onde passei seis meses sem nenhuma espécie de enquadramento legal, e à generosidade daquelas pessoas que me deixavam assistir às aulas.

Com quantos anos veio para Lisboa?

Vim aos 18 e neste momento tenho 51. Ou seja, estou cá há 33 anos, daqui a nada estou a viver o dobro do tempo em Lisboa que o passado em Portalegre. Mas hei de ser sempre portalegrense e sinto-me muito alentejano. Sinto-me sempre muito estrangeiro em Lisboa, apesar de já cá viver este tempo todo. Acho que sou muito marcado por essa vida de província e por um outro olhar, que não é um olhar urbano. O meu objetivo de vida são sempre os meus filhos, tenho quatro filhos. Os dois mais velhos já estão na universidade, a mais pequena tem 12 anos, vou contando os anos para ela também estar na universidade, para me pisgar de Lisboa e poder voltar para a província. Não sei se para o Alentejo, se para a Beira, talvez para a Beira porque a minha mulher é da Beira Baixa.

Mas sempre para o interior?

Não sou um urbanita. E também há um lado ali de elite lisboeta com o qual embirro muito até nos meus escritos. Sempre me senti um pouco estranho e nunca muito integrado nesse aspeto. Acho que não é propriamente uma originalidade, porque os anos da nossa infância são os anos que nos marcam. Eu vejo isso pelos meus filhos. Os meus filhos são lisboetas e eu acho que eles vão gostar tanto, se calhar, de Lisboa como eu hoje em dia ainda gosto de Portalegre. Porque nasceram e cresceram aqui, e esses anos formativos permanecem para a nossa vida. Ainda me lembro de quando tinha seis anos e saltei para o quintal do vizinho, fui lá apanhar maçãs. Portalegre é uma cidade muito marcada pela Serra de São Mamede. É um caso muito particular porque é provavelmente o distrito mais abandonado do país. Eu tenho esperança que as coisas aos poucos mudem. Mas isso também se reflete em termos populacionais, é o distrito que menos deputados elege, apenas dois.

E apesar de tudo…

… ao mesmo tempo é uma zona que tem um potencial de descoberta, até turístico, gigante. Aquela serra está toda por descobrir, por aproveitar. Mas às vezes isto é como a “pescadinha de rabo na boca”, faltam unidades hoteleiras, faltam equipamentos que permitam às pessoas irem para lá em maior quantidade e, portanto, não havendo isso, as pessoas também não vão. Não indo, as coisas não se desenvolvem e, portanto, como é típico do interior, é necessária uma dinâmica autárquica. Tudo isto depende às vezes da presidente de Câmara, o que é que ela é capaz de fazer, o que é capaz de mudar. Quando a gente olha para o que foi Portalegre no século XX, com a Fábrica de Lanifícios, com a Robinson e mesmo as próprias tapeçarias que atravessaram uma época muito pujante, era uma cidade industrialmente forte e desapareceu praticamente tudo, às vezes por azar. Se a Robinson se tivesse aguentado mais uns anos reconfigurava-se porque a cortiça regressou em força… há ali uma série de oportunidades perdidas.

E onde faltam oportunidades?

É uma cidade que sente alguma falta de oportunidades, mas ao mesmo tempo é uma espécie de “ilha” alentejana, onde há muita coisa que pode acontecer, muita coisa por fazer, muitas oportunidades. E ser alentejano tem a ver com essa ligação ao sítio onde se nasce, a um tempo mais lento, no bom sentido da palavra, não no da anedota.

Não tem receio de um dia sair de Lisboa para o interior, como diz, e se arrepender?

Ah, não, não não. Sou muito caseiro mesmo em Lisboa, tenho uma família grande e, ao mesmo tempo, não tenho em Lisboa uma estrutura familiar. Os pais da minha mulher vivem na região de Castelo Branco, os meus em Portalegre, pelo que tivemos de criar os miúdos em Lisboa sem essa estrutura familiar e isso faz com que tenha uma vida muito caseira que gosto muito. Desde que tenha uma biblioteca, internet, banda larga, está tudo bem… ah!, e um jardim para sair. É essa vida que me imagino a fazer com mais calma. Mas o ideal, para quem tem opor- tunidade para isso, é manter uma casa em Lisboa pois quando achar que está a padecer de excesso de pasmaceira, poder vir cá ouvir ruído e barulho e depois de encher os ouvidos durante duas semanas voltar mais dois meses para o interior.

Tem essa vontade de abrandar?

Estou um pouco nessa fase sim, é a chega- da aos 50. Muitas vezes quando falamos na defesa da família colocam-nos logo numa posição muito conservadora, não é? Eu não sou conservador… enfim, quando me defino politicamente costumo dizer que ser de esquerda ou de direita depende da geografia, do país em que nos encontramos e também da época em que se está. Não acho que sejam categorias estanques. Neste Portugal de 2024, defino-me como sendo de direita, mas sou de uma direita dita liberal, sendo que ao mesmo tempo sou um defensor dos valores familiares porque acho que isso precede tudo.

Como é que olha para o despovoamento do interior?

Historicamente também foi sempre menos povoado. Há uma velha piada de que gosto muito, talvez nem sequer seja piada… alguém dizia que Portugal já teve inúmeros regimes, já fomos monarquias absolutas, monarquias constitucionais, tivemos revoluções, tivemos ditaduras, parece que tivemos tudo e mais alguma coisa, mas algo que nunca mudou, o centralismo de Lisboa. Como um país não é migrante, aquilo tem uma tal força que parece que suga tudo, e não parece existir uma preocupação política genuína com isso. Bom, às vezes fala-se da regionalização, relativamente à qual tenho mais dúvidas que certezas, mas nunca houve uma preocupação real com esse centralismo. Quando olhamos, por exemplo, para os Estados Unidos ou para Inglaterra, as melhores universidades, como Harvard ou Oxford, não estão dentro de grandes cidades. Em Portugal está tudo no meio de Lisboa. Ainda que haja um esforço para transformar a Universidade de Évora numa grande universidade, é sempre mais difícil atrair para lá os melhores professores, porque nunca se conseguiu construir isso. E seria uma cidade perfeita para ter um Oxford ou um Cambridge.

Mas o campus envolveria também a construção de residências para estudantes, toda uma estrutura envolvente…

Sim, e acho que às vezes falta aí alguma visão, porque há um centralismo que atrai as pessoas todas para Lisboa e com o qual o Alentejo foi sofrendo ao longo do tempo. Nessas coisas, podemos sempre distribuir a responsabilidade por toda a gente, se calhar alguma responsabilidade terão, mas num país pequeno e com um poder central tão grande, não atribuiria a primeira responsabilidade aos alentejanos. Olhemos para a agricultura, por exemplo.

Para os campos planos?

Que, ao mesmo tempo, não são os campos planos do centro da Europa, em que está sempre a chover e em que se consegue cultivar tudo. As próprias condições geográficas e meteorológicas fazem com que a forma como se aproveita o campo no Alentejo seja obrigatoriamente mais limitada pelas próprias condições do tempo. E vê-se que quando há água, como no caso do Alqueva, derepente toda aquela zona se modifica e nascem novas oportunidades. A quantidade de vozes que a gente ouviu a dizer que a albufeira nunca iria encher, e de repente tudo isso muda. É este o tipo de visão que a gente precisa.

Sendo que, às vezes, temos a sensação que Évora não fala com o Beja, nem estas com Portalegre.

Pois, eu percebo isso e não sei se haverá alguma boa resolução… gostávamos, às vezes, que fossem as pessoas que vivem nesses locais, por si só, a conseguirem multiplicar pequenos negócios ou plantações que tornassem as coisas rentáveis. Isso às vezes é extremamente difícil. É preciso escala, e quando é preciso escala vivemos, de facto, num país capitalista sem capital. E isso nota-se muito. Ainda há aquela famosa queda do BES. Há uma espécie de pecado original de quando os Espírito Santo voltaram para Portugal, voltaram sem dinheiro. Tinham nome, mas tinham sobretudo dívida. Nós sofremos muito no pós 25 de Abril com as nacionalizações. Quando os capitalistas, que expulsámos de Portugal, regressaram para a época das privatizações cavaquistas traziam o nome, mas não traziam o dinheiro. E acho que, desde aí, Portugal tem muita dívida, mas pouco dinheiro próprio. O que faz com que quando surgem as oportunidades como o Alqueva ou do turismo lisboeta, de repente vêm os fundos de investimento, e esses têm uma força e uma capacidade de comprar que os portugueses não têm.

Como é que isso se soluciona?

Acho que é com o passar do tempo, realmente a história da geração mais qualificada é uma coisa que me abre algumas esperanças, porque acho que isso está a mudar. Eu próprio escrevo no “Público” e tenho um programa na SIC [“Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer”] e a tendência de quem faz comentário é apontar o dedo ao que está mal, é ser crítico, é esse verdadeiramente o nosso papel. É verdade que às vezes parece que somos tão críticos que fechamos os olhos a coisas boas que estão a acontecer. Há diferenças até a nível autárquico. Hoje em dia encontro com frequência presidentes de Câmara que já não são do molde de Valentim Loureiro. Acho que, apesar de tudo, claro, no interior as câmaras têm sempre um poder grande, são verdadeiramente a grande empresa da zona, o grande empregador, mas tendo a achar que começa a aparecer uma categoria de autarcas mais qualificadas do que a de há 30 ou 40 anos. São pessoas que já são licenciadas, que já têm mundo e alguma capacidade de desenvolver as coisas com melhor gosto do que o típico sei lá, autarca de Quarteira nos anos de 1980.

Continua a ver-se como jornalista?

Vejo-me como jornalista e acho que mesmo a escrever os textos de opinião se nota que sou jornalista, no sentido em que dou muita importância à escrita, claro, mas é uma espécie de olhar curioso sobre o mundo. E é verdade que acabaram por ser as oportunidades e a carreira que me empurraram para um lado do comentário. Às vezes brinco com o Carlos Vaz Marques, quando estamos no programa da SIC, a dizer que gostaria de estar no papel de moderador. Desenrasco, mas acho que sempre fui melhor a escrever do que a falar. Quem tem algum jeito para escrever, e eu imodestamente acho que tenho, consegue parecer mais inteligente do que é, enquanto na televisão é muito fácil parecer- mos mais estúpidos do que somos. Sou da escrita, sou do papel, e acho que sou jornalista na maneira como olho para as coisas, como tento que os meus textos sejam claros, explicativos, numa espécie também de engajamento com o próprio leitor, que é sempre uma preocupação constante de ser legível. E também de divertir quem me lê, de agarrar o leitor no princípio e levá-lo até ao final de um texto, todo esse tipo de mecânica.

Uma narrativa em boa parte marcada pelo jornalismo?

Olhe, conheço mal a imprensa regional. Porque, claro, vim para Lisboa e, portanto, a minha atenção é sempre mais centrada nos jornais nacionais. Acho que vocês fazem milagres, então no Alentejo, por haver um tecido empresarial com algumas fragilidades e não haver a dinâmica que nós encontramos no Norte do país, fazer este tipo de projetos como a Alentejo Ilustrado. O que encontro na imprensa regional é alguma espécie de ligação com o poder autárquico que torna a vida muito mais difícil para os meios sobreviverem, dependendo da publicidade da Câmara dependem dos humores do presidente da Câmara. Acho que meios que subsistem com alguma dose de independência fazem um trabalho inestimável.

Também se tem dedicado à literatura, com vários títulos publicados, sobretudo infantis. É uma área em que quer apostar?

Ando a adiar livros e tenho tantos projetos para fazer… estou a tentar libertar um pouco a minha vida para me conseguir dedicar a isso, porque arrasto projetos há anos, infindáveis. Os primeiros livros que fiz tinham a ver com a família, curiosamente. Quando os meus primeiros filhos nasceram, escrevia crónicas sobre a vida familiar no “Diário de Notícias” e depois também escrevia no “Correio da Manhã” e os dois primeiros livros são compilações dessas crónicas. É muito engraçado porque refletem aquele período da minha vida, é uma espécie de baú de memórias da infância dos meus filhos. Depois quatro livros infantis, um para cada um deles, mas todos muito diferentes entre si. Tenho um pequeno livrinho também sobre o meu discurso do 10 de junho, porque para mim também foi um momento marcante e eu achava que aquilo que lá disse merecia ser publicado. E depois, depois tenho, sei lá, cinco, seis ideias para livros que espero que ocupem um bocadinho a parte final da minha carreira. Tenho vários projetos em mãos e na cabeça, em andamento, com uma perspetiva sempre jornalística, não tem nada a ver com ficção, mas com contar histórias sobre Portugal.

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