“Nasci no tempo da pobreza”. É Virgínia Oleiro, 78 anos, quem o conta. “Éramos sete irmãos, quando eu nasci já a minha mãe tinha 40 anos, sou a mais nova dos meus irmãos”. Aos sete anos mandaram-na para a escola. “Morava num monte e tínhamos de percorrer sete quilómetros a pé e descalços, porque a gente não tinha sapatos e, no inverno, quando chovia chegava à escola toda pingando”.
Valia-lhes, a ela e aos restantes alunos da mesma condição social, que perto da escola vivesse um casal, em cuja habitação a professora lhes permitia enxugar a roupa, ao lume. Completou a terceira classe e teve mais sorte que as irmãs: “Não aprenderam a ler nem a escrever porque tiveram de ir trabalhar de sol a sol para ajudarem a criar os irmãos mais novos”. Foi também esse o seu destino. “Com 12 anos comecei a trabalhar no campo”. Primeiro a arrancar mato, depois na apanha do tomate, 75 a 80 caixas todos os dias.
Casou aos 17 anos, levou o pouco que tinha. Engravidou, teve dois filhos. “Os patrões, depois, começaram a não dar trabalho à gente, só trabalhavam os que não tinham filhos, os outros, coitadinhos, não tinham trabalho, passavam muitas fomes”.
Depois veio a Revolução de Abril. “Foi uma alegria muito grande”. No concelho de Avis – Virgínia Oleiro nasceu na Aldeia Velha -, foi das que esteve na origem da Cooperativa 29 de Julho. “Para formar a Cooperativa passámos ainda muitas dificuldades, trabalhávamos durante a semana, recebíamos a jorna e depois íamos aos fins de semana apanhar as searas de feijão, de milho e outras sem recebermos que era para pormos a cooperativa de pé”.
Recorda Virgínia que nos mais de 7400 hectares chegaram a trabalhar cerca de duas centenas de pessoas. “Os salários aumentaram, começámos a descontar para a Caixa, graças a isso hoje recebo a minha reforma, toda a gente tinha tudo de fartura em casa”. A Cooperativa chegou a ter um supermercado e uma creche para os filhos dos trabalhadores. Neste caso, a devolução de terras e o fim do processo da Reforma Agrária não ditou o fim da 29 de Julho.
“A nossa Cooperativa ainda existe, não acabou de todo porque comprou uma herdade e arrendou outras”, contou num depoimento recolhido por Ana Benedita e publicado em “Mulheres do Sul Fizeram a Reforma Agrária – Trazem Abril no Coração”, agora publicado pela editora Página a Página, com o apoio da Associação Povo Alentejano.
Nascida em 1947 na Amareleja, Ana Benedita foi, também ela, trabalhadora agrícola. “Ainda menina ia trabalhar para o campo a pé, de sol a sol, em terras do latifundiário”. Participou na greve de 1961 na Herdade dos Gizes, em plena época de ceifa, pela reivindicação das oito horas de trabalho. Filha de um militante comunista, que passou cinco anos nas prisões da PIDE (Aljube, Caxias e Peniche), tornou-se também ela militante do PCP no pós-25 de Abril, tendo assumido diversas responsabilidades políticas, tanto na estrutura do partido como no Município de Moura.
“As mulheres da Reforma Agrária, antes tão sofridas, tão ignoradas, descobriram o direito a exigir direitos e avançaram pelo novo rumo sem olhar para trás”, escreve a jornalista Anabela Fino no prefácio do livro, considerando tratar-se de um caso “em que a participação das mulheres foi determinante para a revoluçãoque ocorreu” nas regiões do Alentejo e de boa parte do Ribatejo.
“Não se trata aqui de disputar protagonismos, mas tão-só de reconhecer que sem elas, as mulheres, a roda da História não teria girado tão depressa, libertando-nos da sujeição ancestral a normas e valores mais pesados que grilhetas”, acrescenta Anabela Fino. “Quando chegou Abril, elas vieram para a rua como toda a gente. Só que esta rua era diferente de todas as outras: era feita de ideias, de palavras, de vontades e de sonhos”.
De sonhos como os de Idalina Mendes. “As terras da cooperativa davam de tudo, eram bonitas as searas de trigo, grão e muitos outros produtos, havia animais e era muito bom. Agora a terra está cheia de oliveiras dos espanhóis e nós ficámos sem nada”. Idalina nasceu em Figueira e Barros, concelho de Avis. Tem 64 anos. “Tenho uma fotografia muito bonita tirada por um moço aqui da terra, onde estou eu e mais umas camaradas de trabalho, todas de lenço e chapéu de palha”.
Para ir à escola, Joaquina Lopes tinha de andar uns cinco quilómetros, a pé. “Passava pelos canteiros de arroz e era preciso muito cuidado para não cair dentro da água”. Tinha seis, sete anos. Numa sacola levava o almoço: “para comer, na escola, era um bocadinho de pão de milho e menos de metade de uma sardinha dentro de um saquinho”.
Fez o exame da terceira classe, num mês de junho. Em setembro seguinte já estava a trabalhar no campo. “Tinha 10 anos, fui para a vindima apanhar os bagos das uvas que as pessoas adultas deixavam cair quando cortavam os cachos”. Aos 14 começou a fazer trabalho de adulto.
Depois de casar, mudou-se para Canal Caveira (Grândola). Veio Abril, e com ele o sindicato e a cooperativa. “Havia muita mulher a trabalhar na Reforma Agrária, mu- lheres mais velhas e outras mais novas. Isto que aconteceu foi muito bom para nós todas, toda a gente ganhou para ter uma casinha”.
Esse foi também a “grande mudança” na vida de Leonarda Madeira, 77 anos. “Penámos muito”. Leonarda não esquece as dificuldades: “Nunca me esqueço do que os meus filhos levavam para comer na escola todos os dias. Era um bocadinho de pão com marmelada e, muitas vezes, tinham de esperar que a galinha pusesse o ovo para fritar”.
À pobreza extrema somava-se a secundarização das mulheres. “Quem mandava eram os homens, nós não decidíamos nada, não podíamos ir sozinhas a lado nenhum não podíamos andar sem meias e sem mangas compridas, era assim que vivíamos”.
Consumada a Revolução, “a gente o que queria era trabalhar a terra e tirar dela o nosso sustento”. E as mulheres, sublinha Leonarda Madeira, começaram a ter “um papel importante ao lado dos homens”. Integrou a Cooperativa Catarina Eufémia, foi dirigente sindical. “Tudo o que Abril nos trouxe não caiu do céu”.

“MULHERES DO SUL FIZERAM A REFORMA AGRÁRIA” \
Ana Benedita
Editora Página a Página
375 páginas – 25,00 euros