A propósito do processo “para rir” colocado pelos Anjos à humorista Joana Marques, têm-se lido por aí opiniões estranhas (sinal dos tempos?), quase a adjectivarem com tom de desdém a liberdade de expressão, esse velhinho alicerce das democracias.
Há até quem, de olhos revirados e vociferando como se estivesse perante a presença do demo, não hesite disparar impropérios sobre a “sacrossanta liberdade de expressão”, como se esta fosse um capricho de iluminados, um privilégio dos que “dizem tudo o que querem” sem pensar nas consequências. Sim, ainda por aí subsistem fanáticos da sociedade bafienta do respeitinho é muito bonito.
O argumento é sempre o mesmo: “Não se pode dizer tudo!” E de facto não se pode. O discurso de ódio, as ameaças, a incitação à violência — tudo isso está (e bem) fora do âmbito da liberdade protegida. Mas o problema é quando se tenta esticar esta definição como um elástico, moldando-o a opiniões incómodas, críticas contundentes ou a simples divergências.
Não raras vezes lá vem o coro das Virgens ofendidas: “há coisas com que não se brinca!”, “ah, mas isso ultrapassa a liberdade de expressão”. Deixo um exemplo. Há uns anos, numa reunião com assistentes sociais, um cidadão deste país a braços com um problema de justiça, lá disse que o procurador do Ministério Público responsável pelo caso tinha era excesso de consumo de álcool. Em vez de um, ficou com dois problemas. E lá acabou condenado nos tribunais portugueses pela prática do crime de difamação e a indemnizar o procurador em 1600 euros.
Claro que o suposto crime acabou por ser apreciado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) de onde o Estado português saiu, uma vez mais, condenado. “Não é descabido considerar que o requerente esperava alguma discrição e reserva por parte dos profissionais. De acordo com o manual de boas práticas da unidade especializada que trabalha com os tribunais de família, tais reuniões implicam um ambiente de confiança, de modo a que os pais se sintam livres para exprimir abertamente os seus pensamentos”, refere o acórdão do TEDH, lá explicando o óbvio: entre o direito à reputação do procurador e a liberdade de expressão, prevalece esta última, pelo que “a condenação penal do recorrente não pode ser considerada proporcional à luz do objetivo legítimo prosseguido, não sendo assim necessária numa sociedade democrática”.
Atacar a liberdade de expressão em nome dos “bons costumes”, do “respeitinho” ou da “verdade oficial” não é novo. A história está cheia de exemplos. Ditaduras, teocracias, regimes autoritários — todos, sem exceção, justificam a censura como uma medida necessária para “proteger” a sociedade. Ironia das ironias: mesmo os que hoje torcem o nariz à “sacrossanta liberdade de expressão” só podem fazê-lo porque vivem em sociedades que a permitem. Isto é, só se pode criticar a liberdade de expressão nos termos em que entenderem fazê-lo… graças à liberdade de expressão.
É por isso que é preciso defendê-la — mesmo (e sobretudo) quando protege opiniões que detestamos, que consideramos injustas ou reles. Defender a liberdade de expressão não é proteger o ruído, mas garantir que, entre o ruído, continua a haver lugar para o pensamento. Não é um direito sacrossanto. É um direito essencial. E não é essencial por ser perfeito, mas porque é o único que impede que alguém decida, em nosso nome, o que se pode ou não dizer.