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Memória: O dia em que nasceu o Serviço Nacional de Saúde

Antes do 25 de Abril, a maioria das pessoas nascia, crescia e morria sem assistência médica. Num único dia, sem avisar ninguém no Governo, o então ministro António Arnaut criou o Serviço Nacional de Saúde. De acesso universal. Luís Godinho (texto)

Quinta-feira, 20 de julho de 1978. Portugal acaba de estabelecer um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) para evitar a bancarrota. Com os cofres vazios, o II Governo Constitucional, liderado por Mário Soares, aproxima-se do estertor. Sobrevive em permanente agonia, refém das exigências do partido mais à direita do Parlamento, o CDS, o único que meses antes tinha concordado em viabilizar o novo Executivo. Na tarde desse dia 20 de julho o Diário de Lisboa titula que o CDS tem em curso uma estratégia para “controlar o aparelho do Estado”.

Há quem defenda eleições antecipadas mas esse cenário dificilmente conduziria a uma solução estável. É também este o entendimento do Palácio de Belém. Daí a pouco mais de um mês, depois da demissão de Soares, Ramalho Eanes não convocará eleições, antes dará posse ao primeiro de três governos de iniciativa presidencial, liderado por Alfredo Nobre da Costa. Quatro anos depois da Revolução de Abril, a crispação política permanece ao rubro.

António Arnaut sabe bem que só por poucos dias, talvez horas, continuará a desempenhar funções como ministro dos Assuntos Sociais. É tempo de agir. Na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa, na solidão do seu gabinete, decide uma jogada arriscada que marcará o futuro da saúde em Portugal. Contra a opinião dos setores mais conservadores da sociedade portuguesa, sem o apoio de alguns camaradas de partido, claramente mais interessados em manter o poder do que em criar complicações com o parceiro de coligação, e enfrentando a poderosa Ordem dos Médicos, assina o despacho através do qual cria o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Datado de 20 de julho de 1978 e publicado nove dias depois na segunda série do “Diário da República”, o Despacho Arnaut determina que todas as pessoas “não abrangidas por quaisquer esquemas de proteção na doença» passam a integrar o SNS, dispondo gratuitamente de consultas de clínica geral e de especialidades médicas, serviços de enfermagem, internamento hospitalar, assistência medicamentosa e acesso a exames complementares de diagnóstico e tratamentos especializados”.

Nunca antes disso, e certamente nunca depois desse dia, uma reforma com tanto impacto na vida dos portugueses e nas contas do Orçamento do Estado foi implementada através de um simples despacho de um membro do Governo.

O então ministro lembra que a criação do SNS constava do programa apresentado ao Parlamento e era um imperativo inscrito na Constituição da República, aprovada dois anos antes, no sentido de garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos serviços de saúde.

Como os esquemas de proteção na doença existentes à época, designadamente os Serviços Médico-Sociais ou a Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE) apenas chegavam a uma pequena parte da população, existindo milhões de portugueses “em que avultam, de modo particular, os mais desfavorecidos, sem qualquer proteção sanitária do Estado, o que é manifestamente injusto”, o despacho assinado por António Arnaut veio “acabar com as desigualdades existentes neste domínio» e dar mais um passo “na concretização do direito à saúde para todos os portugueses”.

Para impedir qualquer tipo de hesitação por parte da Administração Pública e generalizar o quanto antes as novas orientações de acesso aos cuidados de saúde, o ministro ordena à Comissão Instaladora dos Serviços Médico-Sociais que tome as medidas necessárias para aplicar as disposições constantes do despacho que começa a produzir efeitos no dia seguinte ao da sua publicação em Diário da República.

O país não voltaria a ser o mesmo. De um dia para o outro, milhões de cidadãos passaram a ter acesso a um serviço de saúde “universal, geral e gratuito” que salvou milhões de vidas e se traduziu num progresso social nunca antes visto. Arnaut sabia que o momento era aquele, uma espécie de agora ou nunca. Por isso manteve o despacho em segredo. Enviou-o para publicação sem sequer consultar o gabinete do primeiro-ministro e “meteu uma cunha” a um “amigo fraterno”, leia-se, membro da Maçonaria, que trabalhava na Imprensa Nacional Casa da Moeda para que fosse publicado o quanto antes, ou seja, enquanto havia Governo.

Sê-lo-ia nove dias depois, um tempo recorde para a época, e apanhou toda a gente de surpresa, incluindo os próprios camaradas de partido. A partir dessa altura passou a ser impossível fazer marcha-atrás e retirar direitos. Milhares de portugueses começaram a recorrer aos hospitais públicos e aos centros de saúde sabendo que a assistência médica se tinha tornado gratuita.

“Foi uma decisão monumental. Apanhei-me ministro sem querer, tinha a caneta na mão e escrevi aquele despacho. Os escritores escrevem livros, os ministros escrevem no Diário da República. Assinei-o e fui para casa. Quando foi publicado e a malta começou a acorrer aos hospitais deixou de haver hipótese de recuo”.

“Ó ARNAUT, ENTÃO VAIS PUBLICAR UMA COISA DESTAS?”

Nenhum membro do Governo tinha tido conhecimento prévio da decisão do ministro dos Assuntos Sociais. Mário Soares não reage. Vítor Constâncio, ministro das Finanças, telefona para o Ministério dos Assuntos Sociais: “Ó Arnaut, então vais publicar uma coisa destas? Já fizeste as contas ao que vai custar?” – interroga. A resposta foi pronta: “As contas fazes tu, que és o ministro das Finanças”.

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