A língua mirandesa foi considerada língua oficial em Portugal desde 1999, fazendo a 17 de Setembro de 2024, 25 anos de oficialização. A legalização tomou forma através da publicação da Lei n.º 7/99 de 29 de janeiro – “Reconhecimento oficial de direitos linguísticos da comunidade mirandesa”; a que se seguiu a publicação do Despacho Normativo n.º 35/99, pelo Ministério da Educação.
Este modo de falar tão singular como o é o mirandês, não é nem português, nem galego, nem castelhano, nem um misto das três línguas. Consideram os linguistas que é um idioma individual e, tal como as outras três línguas, filiada no latim. A língua mirandesa é ainda falada hoje no extremo nordeste de Portugal, em terras de Miranda, sendo considerada a segunda língua oficial do nosso País.
Para José Leite de Vasconcelos os contos tradicionais assemelham-se aos “calhaus rolados”, uma vez que os contos têm de ser contados, têm de ser muito “rolados” para se tornarem perfeitos na sua narração e sobrevivência enquanto tradição oral.
No fundo, o conto tradicional, que chegou até nós hoje, é a forma sobrevivente da narração ao longo dos tempos, de boca a ouvido…
Tradicionalmente se o conto não for ouvido, nem for contado, é esquecido, morre, desaparece. Se o processo contar / ouvir / re-contar… for interrompido, esse processo em espiral de comunicação tradicional e secular, o conto, resultado e veículo da Tradição, desaparece das nossas memórias.
Partilho um conto narrado por essa língua “diferente” que existe no nosso território nacional – o mirandês.
O exercício de tradução que realizei quis construí-lo muito intuitivamente e socorrendo-me da leitura em alta voz das palavras escritas para melhor lhes captar o sentido.
Encontramos os mesmos contos ou variantes muito parecidas nas três línguas. O fundo cultural é comum, as trocas simbólicas que se exercem através das narrações acabam por enriquecer o substracto de cada uma.
A partilha desta pérola da sabedoria popular é fundamental para o conhecimento e reconhecimento das nossas riquezas culturais enquanto povo de raízes centenárias.
*
* *
LA FILADEIRA
Conto em mirandês
Era ua beç ua tie que era mui filadeira, filaba muito lhino. Un die dixo assi pa l tiu:
-Ah home, tu habies de ir a buscar-me ua carrada de lheinha para cozer las meadas!
– I tenes muitas meadas?
– Tengo.
Metiu la cabeça na arca i ampeçou a cuntar: ua, dues, três, quatro,.. até cuntar muitas, mas solo tenie ua.
L tiu arresolbiu anton ir a buscar ua carrada
de lheinha pa ls lhados de l maiuôlo para
cozer las meadas de lhino.
– La tie quando l biu fui-se a tener cun la comadre i dixe-le assi:
– Ah comadre, you mandei l cumpadre a buscar lheinha para cozer l lhino i you solo tengo ua maçaroca!…
– Calhai-bos comadre, nun bos amporteis, bamos las dues a comer l galho grande i a buer un tonel de bino que cun l cumpadre amanho-me you.
Fúrun-se anton a comer l galho i a buer l bino.
L tiu andaba a arar i la comadre fui-se a tener cun el, scundiu-se nun buraco que habie alhi nun carrasco i ampeçou a dezir assi:
-You sou l Sprito Santo sagrado, bui-te l tou bino i roubei-te l tou fiado!
L tiu oubiu aquilho i ampeçou pa las bacas:
-Xó, xó!
Bolbiu anton la boç de la comadre:
-You sou l Sprito-Santo sagrado, bui-te tou bino i roubei-te l tou fiado!
L tiu tubo miêdo i saltou-te a correr para casa.
I la tie dixe-le assi:
– Ah home, quei te passou de beniste tan cedo?
– Ah mulhier bai a ber las meadas!
– Ah home que mos roubórun las meadas!
– Ora bai a tocar no tonel!
-Ah home que mos robórun l bino!
– Calha-te mulhier que Dius mos l dou Dius mos l tiroue.
(Tiêrra de recuôlha: Picuôte – Einformante: Angélica da Ascenção Bárbolo)
*
* *
A FIANDEIRA
Exercício de tradução do mirandês para o português
Era uma vez uma mulher que era muito boa fiandeira, fiava muito linho. Um dia disse assim para o marido:
– Ah homem, tu havias de ir buscar-me uma carrada de lenha para cozer as meadas!
– E tens muitas meadas?
– Tenho.
Meteu a cabeça na arca e começou a contar: uma, duas, três, quatro… Até contar muitas, mas somente tinha uma meada.
O marido resolveu então ir buscar uma carrada de lenha para os lados de um maiuôlo para cozer as meadas de linho.
A mulher quando o viu foi ter com a comadre e disse-lhe assim:
– Ah comadre, eu mandei o compadre buscar lenha para cozer o linho e só tenho uma maçaroca!…
– Calai-vos comadre, não vos importeis, vamos as duas comer um galo grande e beber um tonel de vinho que com o compadre eu cá me arranjarei.
Foram então a comer o galo e a beber o vinho.
O marido andava a arar e a comadre foi ao encontro dele, escondeu-se num buraco que havia ali num carrasco e começou a falar assim:
– Eu sou o Espírito Santo sagrado, bebi-te o teu vinho e roubei-te o teu fiado!
O homem ouviu aquilo e gritou para as vacas:
– Xó, xó!
Voltou então a voz da comadre:
– Eu sou o Espírito Santo sagrado, bebi-te o teu vinho e roubei-te o teu fiado!
O homem teve medo e foi a correr e a saltar para casa.
E a mulher disse-lhe assim:
– Ah homem, o que se passou que vieste tão cedo?
– Ah mulher vai ver as meadas!
– Ah homem que nos roubaram as meadas!
– Ora vai a tocar no tonel!
– Ah homem que nos roubaram o vinho!
– Cala-te mulher que Deus nos deu e Deus nos tirou.
(Terra de recolha: Picote – Informante: Angéliaca da Ascenção Bárbolo, 75 anos
Recolha efectuada por: Maria Cristina Alves Pires)
in “Lhiteratura Oral Mirandesa – Recuôlha de textos an mirandês”, Coordenação de António Nárbolo Alves, Colecção Estudos e Textos Mirandeses, Granito Editores e Livreiros, Porto, Maio de 1999.
http://www.mirandadodouro.com/dicionario/traducao-mirandes-portugues/galho%20/