O jornalismo vive de ciclos de indignação efémeros. Hoje escandaliza-se com um ‘tweet’, amanhã com um ‘meme’. Assim se alimenta a máquina noticiosa. Raros são os casos que escapam a esta lógica. O último escândalo em Washington, porém, promete sobreviver à vida útil de uma publicação de Instagram.
Chamam-lhe já Appgate, numa vénia preguiçosa ao Watergate. Os ingredientes são clássicos: políticos “chocados”, especialistas em segurança a exigir demissões, investigações parlamentares. Desta vez, porém, o absurdo ultrapassa a ficção. A cúpula da segurança nacional dos EUA – incluindo o vice-presidente JD Vance – discutiu, num grupo do Signal, se devia bombardear o Iémen. Sim, no Signal: aplicação usada por adolescentes para partilhar ‘memes’ e fugir à vigilância dos pais, transformada em sala de guerra digital com mensagens que se autodestroem.
O detalhe tragicómico? Jeffrey Goldberg, editor-chefe da revista “The Atlantic”, foi acidentalmente incluído no grupo. Durante horas, testemunhou ‘emojis’ bélicos, críticas à Europa (“parasitas”, “patéticos”) e debates estratégicos dignos de um ‘chat’ de adolescentes que se julgam estadistas. Goldberg, em vez de recolher provas, denunciou a fuga.
Perdeu uma reportagem épica, mas ganhou o título de “patriota” – e revitalizou uma carreira em declínio. Ironia das ironias: o mesmo ciclo de indignação que ele alimentou durante décadas engoliu-o, transformando-o em ator involuntário do circo que critica.
A indignação dos especialistas é previsível: decisões de vida ou morte pertencem à ‘situation room’, não a uma aplicação vulnerável. Mas a hipocrisia revela-se na crítica. Durante décadas, a imprensa exigiu transparência nos bastidores do poder. Ora, eis que a incompetência governamental oferece exatamente isso. A reação, contudo, é o escândalo.
Vance e os seus colegas fazem a dupla Duarte e Tó, os detectives trapalhões da série portuguesa da RTP “Duarte & Companhia”, parecerem espiões saídos de um ‘thriller’ de John Le Carré. A equipa de Vance reduz a geopolítica a trocas de mensagens criptografadas, onde ‘emojis’ de explosão substituem análises estratégicas e decisões impulsivas disfarçam-se de diplomacia.
Os diálogos revelados pintam um retrato grotesco: um governo que trata operações militares como conversas de tasco, onde ícones de bandeirinhas servem de substitutos pobres para mapas de guerra. É o contraste obsceno entre a solenidade das vidas em jogo e a frivolidade de quem tecla ordens fatais entre notificações do Instagram.
Trump, arquétipo da infantilização do poder, nem sequer integrava o grupo. Preocupava-se, talvez, com a caça aos ovos da Páscoa na Casa Branca ou testar o botão da coca-cola ‘light’ no salão oval. Enquanto isso, a aliança transatlântica morria num chat encriptado, entre gralhas de escrita e ‘emojis’.
Há ironia no caos. A administração Trump, ao tropeçar na própria inépcia, desvendou o mito das “pessoas de bem” que nos governam. As mensagens revelam não só imprudência, mas a banalidade com que se decide o destino de nações.
O Appgate não é apenas uma anedota sobre políticos incompetentes ou jornalismo oportunista. É um teste à maturidade democrática. Exigimos transparência, mas aceitamos a pantomima digital como substituto da governação séria? A resposta está nas mãos de eleitores que, em vez de partilharem, indignados, capturas de ecrã devem cobrar aos líderes (e à imprensa) que tratem a política como algo mais que um jogo.
A próxima mensagem que se autodestrói poderá ser a própria democracia.