Numa comunicação apresentada em Santiago de Compostela, em 2008, “A Rainha Peregrina, Lendas e Memórias”, Maria de Lourdes Cidraes, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, refere que Isabel de Aragão, a “Rainha Santa”, ficou na memória do povo pela sua “piedade e devoção”, tanto na “proteção” às ordens religiosas como no apoio a doentes e órfãos.
“No imaginário coletivo e na devoção popular”, sublinha, “ficou sobretudo a imagem de uma rainha caritativa, tratando por suas mãos leprosos e chagados e distribuindo esmolas aos pobres que acorriam a vê-la: a rainha das rosas”.
O episódio do “milagre das rosas” não consta das primeiras fontes documentais, tendo surgido já tardiamente, muito provavelmente “por contaminação com o culto de Santa Isabel da Hungria”, tia-avó da rainha portuguesa.
As primeiras alusões ao “milagre” datam do início do século XVI, quase dois séculos depois da morte de Isabel de Aragão. E é também referido por Frei Marcos de Lisboa na sua “Crónica dos Frades Menores da Província de Portugal”, datada de 1562. Escreve Frei Marcos: “Levava uma vez a Rainha Santa moedas no regaço para dar aos pobres, encontrando-a el-rei lhe perguntou o que levava e ela disse: levo aqui rosas. E rosas viu el-rei, não sendo tempo delas”.
Tardio ou não, o episódio permanece até hoje “como o mais persistente elemento da tradição lendária isabelina e do culto popular e religioso da Rainha Santa”, representado das mais diversas formas ao longo dos séculos, “da iluminura à gravura e da pintura à imaginária e à escultura”.
Ou à azulejaria. Na parede fundeira da antiga Igreja do Espírito Santo, em Monforte, edifício religioso que durante anos foi utilizado como armazém, mesmo por cima da porta, eis as figuras de Isabel de Aragão e D. Dinis pintadas num painel de azulejos, ela “segurando no regaço as flores em que o pão e as moedas milagrosamente se tinham transformado”.
Coordenadora do livro “Imagens da Rainha Santa Isabel na Arte Portuguesa”, é também Maria de Lourdes Cidraes que classifica este painel de Monforte como “um dos raros exemplos” da representação do “milagre das rosas” na pintura de azulejo, “devendo ainda referir-se o painel setecentista da sacristia da Igreja de S. Francisco de Estremoz” e, já do século XX, o painel do Tribunal de Coimbra, da autoria de Jorge Colaço.
“Refira-se ainda”, prossegue a investigadora, “que o painel de Monforte é uma das raras composições onde figura apenas o casal régio sem a presença dos habituais figurantes (mendigos, operários ou personagens da corte”, num trabalho que se “aproxima mais de uma pintura devocional que de uma composição narrativa”.
Este conjunto de azulejos evocativo do “milagre das rosas” é um dos 16 que integram o denominado Monforte Sacro, um museu agora inaugurado, instalado na antiga Igreja do Espírito Santo, que reúne cerca de 16 mil azulejos do século XVIII alusivos à vida e “hagiografia” da Rainha Santa Isabel. O projeto, “moroso”, nas palavras do presidente da Câmara de Monforte, Gonçalo Lagem, envolveu um investimento de 800 mil euros e permitiu retirar este conjunto de azulejos do “baú” da história. Literalmente.
A RUÍNA DO CONVENTO
Os azulejos encontravam-se originariamente no Convento das Clarissas do Bom Jesus de Monforte, fundado em 1520 por iniciativa do padre Fernão Zebreiro Moutosa e que “chegou a ser um dos maiores e mais ricos cenóbios alto-alentejanos”, nas palavras de Vítor Serrão (da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e de José Inácio Militão Silva (historiador a trabalhar na Câmara de Monforte).
Em “O Convento do Bom Jesus de Monforte. As desaparecidas pinturas de brutesco da igreja”, os dois autores lembram que o convento, “alvo de lento e inexorável abandono”, acabou por ser destruído em 1945, “num lamentável ato de lesa-património que depauperou o tecido da histórica vila”.
O edifício começou a ser alvo de saques e pilhagens depois de 1862, aquando da morte da última monja. No final do século XIX seria comprado pelo Marquês da Praia e de Monforte (cujo palacete em Estremoz alberga atualmente o Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz) e doado pelos seus herdeiros, em 1920, à Misericórdia de Monforte. “Face à ausência de soluções tendentes à sua recuperação, foi mandado arrasar, em 1945, para aí se construir o edifício da Caixa de Crédito Agrícola de Monforte”.
Desaparecia assim um edifício que, segundo Vítor Serrão e José Inácio Militão Silva, integrava, entre outras dependências, “uma igreja com notável recheio, concebido e decorado segundo o espírito da ‘arte total do Barroco’, com o seu equipamento de talha dourada, azulejos, imaginária, pintura policroma de brutesco [obra que representa animais], telas historiadas, têxteis e peças de ouro e prata”.
Tratava-se de um “dos mais relevantes” conventos da ordem Clarissa no Alentejo, “dado o incremento que gozou por parte da nobreza regional, da poderosa Casa de Bragança, e da própria corte, com dotação das suas monjas, e que, por essa via mecenática, acumulou riquezas em bens móveis e de raiz ao longo da sua existência, tornando-se uma comunidade próspera nos séculos XVII e XVIII”. Com a destruição do convento, prosseguem, a vila “ficou mais pobre no seu acervo de valências patrimoniais”.
UM ARCEBISPO “TOCADO” PELA ARTE
De acordo com os dois historiadores, as fotografias da demolição, “que são explícitas na sua nudez testemunhal, ainda deixam admirar a qualidade do perfil arquitetónico, erigido em austero ‘estilo chão’, e a excecional riqueza do recheio de azulejos setecentistas que decorava o corpo da igreja”. E depois, “tudo desapareceu com a destruição”. Bom, tudo é uma maneira de dizer.
Na verdade, por intervenção do então arcebispo de Évora, Dom Manuel Mendes da Conceição Santos, os “excecionais azulejos com a iconografia da Rainha Santa Isabel” foram cuidadosamente numerados e encaixotados. Ao todo, quase 16 mil azulejos foram acondicionados em 59 caixotes de madeira, onde ficaram mais de 70 anos à guarda da Misericórdia de Monforte, “chegando incólumes aos nossos dias”.
Na opinião de Vítor Serrão e de José Inácio Militão Silva, este conjunto de painéis constitui “o mais complexo repositório iconográfico sobre Santa Isabel que existe no país – e no mundo -, tanto nas vertentes régia como franciscana, igualando e superando mesmo, pela vastidão das representações e pela absoluta raridade de alguns dos ‘milagres’ representados, os acervos de Santa Clara-a-Nova de Coimbra e da Capela da Rainha Santa Isabel do Castelo de Estremoz”.
O processo para a sua “recuperação” iniciou-se em 2006 com a assinatura de um protocolo entre a Câmara e a Santa Casa da Misericórdia de Monforte, embora só seis anos mais tarde é que se tenha procedido à abertura dos caixotes e à inventariação e remontagem dos diversos painéis.
Segundo Vítor Serrão, trata-se de uma “micro-história de sucesso”, uma história com final feliz. “Era uma vez um convento de clarissas, o Bom Jesus de Monforte, que a insensibilidade dos poderes de então mandou demolir”, começa por lembrar o historiador, que a este “era uma vez” junta uma segunda afirmação: “Era uma vez uma equipa de técnicos que, desde 2012, meteu mãos à obra com vista ao estudo e reorganização dos milhares de azulejos setecentistas felizmente resguardados em caixotes aquando da demolição”.
E “era uma vez um projeto chamado Monforte Sacro, “que durante 10 anos estudou, inventariou, protegeu, montou, identificou, musealizou esses acervos dando voz a um património totalmente esquecido”, recorda Vítor Serrão na sua página de Facebook, sublinhando ainda o papel do Município em “recuperar uma velha igreja” desafetada ao culto para aí “instalar o museu onde se remontaram os painéis cerâmicos do demolido cenóbio”.
A renovada e enriquecida Igreja do Espírito Santo pode ser visitada de segunda-feira a sábado das 09h00 às 16h00 e aos domingos das 10h00 às 13h00.
UMA VIDA EM 16 PAINÉIS
De acordo com José Meco, historiador de arte e membro da Academia Nacional das Belas Artes, estes painéis de azulejos – organizados em três conjuntos de temas (episódios da vida, milagres e glorificação da Rainha Santa) – forravam por completo a nave da igreja do Convento do Bom Jesus de Monforte, “formando dois andares de painéis figurativos” envolvidos por “cercaduras” que imitavam “molduras de talha dourada”, num conjunto “bem representativo do estilo barroco joanino, já de uma fase avançada dos anos 1740”.
Na verdade, terão sido encomendados em 1748 pela abadessa Soror Maria Baptista Barcane Leite, filha de João Barcane Leite, um “notável” da corte de D. João V, à oficina lisboeta do pintor Valentim Almeida. Inteiramente pintado a azul de cobalto sobre branco, “trata-se de um magnífico conjunto característico da melhor produção de azulejaria joanina de Lisboa, patrocinado pelo desembargador Plácido de Almeida Moutozo, natural de Monforte e figura ilustre da corte de D. João V, que antes desempenhara o cargo de superintendente das minas de ouro e diamantes do Tejuco do Serro Frio, no Brasil”, sublinha José Meco.
Paula Morgado, da Câmara de Monforte, conta que durante o período em que os azulejos estiveram encaixotados mudaram duas vezes de local. No início dos anos 70 fez-se uma “primeira tentativa de remontagem” que não correu bem: “não sabemos quantos e quais os contentores então abertos, mas os trabalhos não terão sido bem sucedidos, devido às muitas faltas de azulejos que completassem sequências, pelo que voltaram a ser encaixotados”.
Ainda de acordo com Paula Morgado, daqui resultou a convicção de que o espólio “estaria completamente desorganizado e sem possibilidade de recuperação da disposição original que teria na igreja do convento”, o que não se veio a verificar.
Como se disse, os painéis podem ser enquadrados em três conjuntos de temas. No primeiro, “episódios da vida da Rainha D. Isabel”, surge a intervenção pacificadora da rainha no combate entre as forças de D. Dinis (seu marido) e do infante D. Afonso (filho), a sua peregrinação a Santiago de Compostela, já viúva, ou a chegada do cortejo fúnebre ao Mosteiro de Santa Clara. Num segundo conjunto, dedicado aos “milagres”, lá surge a “aparição de Nossa Senhora”, ocorrida na véspera da morte de Isabel de Aragão em Estremoz, a 4 de julho de 1336, ou a “cura” de uma doente com lepra.
Finalmente, o terceiro grupo refere-se à “glorificação da Rainha Santa”, lá surgindo, entre outros painéis, o do “milagre das rosas”, em que surge acompanhada por D. Diniz.