Todos os dias, antes do nascer do sol e até outubro, Paulo Encarnação, coordenador da Estação Ornitológica Nacional (EON), calça as galochas, a condizer com a farda de vigilante da Natureza, para abrir as redes de captura das aves migratórias.
A tarefa já está concluída, quando a equipa de reportagem chega ao local, às 07h30, para assistir ao recolher das pequenas aves que não escaparam às armadilhas colocadas em locais estratégicos, como os caniçais. “Todos os anos, a partir do dia 01 de agosto, às vezes um bocadinho antes, e até 10 ou 15 de outubro temos sempre as redes montadas no terreno e [estamos] a marcar bichos todos os dias”.
Ao todo, são 12 linhas de captura, cada uma delas entre os 80 a 100 metros de comprimento e três metros de altura. Cada linha tem no mínimo cinco redes e cada rede 18 metros.
A presença destas aves na Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha não passa despercebida e, por isso, desde 1977 que se realizam aqui campanhas de anilhagem. Acontecem todos os anos na EON, inaugurada em 2004, sob a tutela do agora Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) para dar apoio a esta atividade.
Por este vasto ‘aeroporto’ de chegadas e partidas “passam certamente muito mais [aves] do que aquelas que a gente captura. Era bom que conseguíssemos apanhá-las todas, mas isso é um objetivo quase utópico”, reconhece Paulo Encarnação.
As redes finas são colocadas no meio de extensos corredores, abertos com a ajuda das máquinas de um dos rendeiros, Rui Pinela, trabalho outrora feito de forma manual.
O relógio já marca 08h54 quando um grupo de voluntários, que integra biólogos recém-formados, e também três vigilantes da natureza (Ricardo, Bruno e Laura) se juntam ao coordenador para verificarem, pela quarta vez, as linhas de captura. A primeira ‘viagem’ do dia foi às 05h30.
Em determinadas alturas, explica Paulo Encarnação, anilhador há mais de 30 anos, as aves conseguem ver as redes, mas “a ideia é tentar iludi-las por instantes” para que fiquem presas nuns pequenos bolsos. “Tens de aprender a retirar as aves [da rede] sem lhes causar qualquer lesão e isso é uma das técnicas que ensinamos na formação dos anilhadores”, realça, acrescentando que, durante a campanha, são capturadas cinco a seis mil aves, pertencentes a mais de 80 espécies.
E, todos os anos, há uma nova espécie para a Lagoa de Santo André. “Já apanhei aqui uma escrevedeira-pequena (Emberiza Pusilla)”, diz,com o rosto empolgado, seguindo-se um silêncio e, logo depois, o esclarecimento: “É uma espécie que vem da zona da Rússia. Agora, como é que o bicho veio aqui parar, isso gostava eu de saber”.
As aves retiradas das redes são colocadas em pequenos sacos de pano e levadas até à zona da mesa de anilhagem, um espaço aberto construído no meio da natureza, e é aqui que se retiram “todos os dados biométricos” de cada exemplar. Em volta, o grupo inicia mais um trabalho de medição, pesagem, anilhagem e de introdução dos resultados na base de dados do ICNF.
“Está a ser muito giro, estamos a aprender bastante. Era mesmo esse o intuito, ganhar experiência com aves e começar a identificar melhor e a conhecer mais pormenores sobre aves”, conta um dos biólogos, Miguel Doroteia, de Vila Franca de Xira. Instantes depois, volta a concentrar-se na sua ave, soprando com delicadeza para a barriga do macho que tem na mão: “Estou a ver se ele tem ou não gordura e qual o nível de músculo”.
É Miguel Doroteia quem explica: “Sopra-se na barriga, aqui em baixo, um bocadinho por baixo do pescoço e também por baixo da asa”. Nesta tarefa, que não deve demorar mais do que 30 minutos, os futuros anilhadores ficam a “saber o tamanho da asa, do bico, da cabeça, da cauda, do tarso [equivalente à canela] e a colocar a anilha” na pata direita, como um discreto anel.
“Eventualmente ver a sua performance física, ou seja gordura e músculo e, por fim, tirar o peso e libertar”, porque nenhuma ave fica em cativeiro, esclarece Paulo Encarnação.
No meio das aves que caíram nas malhas dos anilhadores há um colorido guarda-rios, que é uma recaptura, e um rouxinol pequeno dos caniços, com sete anos, anilhado pela primeira vez na EON em 2020, quando ainda era “adolescente” e, entretanto, já apanhado por três vezes nesta reserva.
Uma a uma, até bem perto da hora de almoço, todas as 76 aves de 12 espécies capturadas nesta sessão são devolvidas à natureza, num ciclo bem orquestrado que se repete, diariamente, até outubro.
ESTAÇÃO ATRAI GENTE DE TODO O MUNDO
Com uma área de 270 hectares, a Estação Ornitológica Nacional atrai “ornitólogos de todo o mundo, contribuindo significativamente para a proteção da avifauna, permitindo recolher informação fundamental para a proteção eficaz das espécies de aves migratórias e residentes”, refere o ICNF, indicando que desde o início das campanhas, foram capturadas, recapturadas e anilhadas um total superior a 173 mil aves, de 192 espécie”. As mais capturadas são o rouxinol-pequeno-dos-caniços (Acrocephalus scirpaeus), a andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica) e a felosa-musical (Phylloscopus trochilus).