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O território não estica, mas no Litoral Alentejano pode encolher

Neste território que não chega para as encomendas e em que os inúmeros investimentos se empilham indiferentes a lógicas de ordenamento e qualificação socioterritorial vemos todas as contradições entre crescimento e desenvolvimento, entre fatores fortes e fatores fracos, entre quem se impõe e quem se submete. Jorge Gonçalves* (opinião) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Podia começar, como em alguns filmes, com a referência de “Há 15 anos atrás…”. Nessa altura, por volta de 2009 ou 2010 o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina tinha duas décadas de existência e o Hospital do Litoral Alentejano tinha cinco anos. O Porto de Sines continuava a ser uma promessa, mas com os investimentos públicos desde o início do século a ultrapassarem já as centenas de milhões de euros.

O PROTALI – Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo Litoral estava em vigor desde 1993, revelando enorme preocupação e sensibilidade com um desenvolvimento integrado e equilibrado, mas era favorecido por um dinamismo territorial pouco desafiante. Tinha o turismo sob controlo definindo limites de carga precisos e racionais. Só em 2010 foi revogado pelo Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo, que está ainda em vigor agora com a designação de Programa.

A população nestes cinco concelhos do Litoral Alentejano – Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém, Sines e Odemira – não ultrapassava os 100 mil habitantes sendo, em 2011, de 97.925 residentes (12,9% do Alentejo), tendo recuado dos 99.976 indivíduos de 2001 (-2,05%). Eram quase dois idosos para cada jovem, com um agravamento também face à situação do início do século, pois passaram a ser mais 8% de idosos e menos 5% de jovens. O parque habitacional em 2011 não ultrapassava os 40 mil (39.584) aloja-mentos familiares ocupados como residência habitual (13,3% do Alentejo).

Percebia-se, por isso, o definhamento da vitalidade sociodemográfica neste território, dizendo-nos o INE que, nesse mesmo ano, o saldo migratório já era responsável por 31,1% da variação da população residente. O valor médio dos prédios rústicos transacionados tinha passado dos 41.530 euros (2001) para os 62.258 em 2009, revelando-se já esta valorização do solo rural em contraciclo com as demais dinâmicas observadas, denunciando os primeiros sinais da contradição que aí viria.

Este era o retrato de um território onde a infraestruturação ia avançando lentamente e onde a proteção do ambiente se fazia sem grande dificuldade pela ausência de uma verdadeira pressão turística, ainda polarizada em torno de locais bem delimitados. A agricultura era marcada por práticas tradicionais extensivas, com as exceções conhecidas nos vales do Sado e do Mira. O ordenamento do território até parecia que funcionava, regulando sem grandes dificuldades o uso de uma terra pouco procurada pela economia e cada vez mais repulsiva demograficamente.

Agora, e de repente, parece que já não há espaço para todos. O território encolheu. A sul de Vila Nova de Milfontes as estufas inventadas na sub-região por Thierry Roussel e que tinham sido abandonadas nos anos 90 regressaram na primeira década do século XXI e ganharam ex- pressão desmedida na segunda. Foram acompanhadas por uma agricultura intensiva que não se faz debaixo de plástico e que é sedenta de água, aproveitando o perímetro de rega do Mira, alimentado pela Barragem de Santa Clara. O facto de, em muitos casos, estas explorações agrícolas não carecerem de licenciamento, faz com que os impactos no consumo de água e no ambiente natural possam estar fora de controlo.

Sines, por seu lado, não cabe em si com tanta procura logística e industrial. Os projetos em execução e previstos ultrapassam os vários milhares de milhões de euros e muitos deles contando com o estímulo das novas ligações ferroviárias em construção e com a via verde que o quadro legal dos Projetos de Interesse Nacional proporciona. A pressão é tanta que o conflito ambiental já estalou, estando aliás na base da operação “Influencer” com as consequências políticas que se conhecem.

O turismo residencial avançando desde o norte da sub-região parece que agora já chega a Aljezur como dizia alguém nas redes sociais, desmantelando parques de campismo e um dia, quem sabe, até o estabelecimento prisional de Pinheiro da Cruz (“Grandes grupos cobiçam prisão do Pinheiro da Cruz para fins turísticos”, “Jornal de Negócios”, 1 de setembro de 2008), que dispõe de uns sedutores 1500 hectares e de uma frente de praias com três quilómetros de extensão. Os megaempreendimentos turísticos de luxo que se multiplicam neste litoral sugerem riscos ambientais, com a proximidade aos cordões dunares, e sociais, com o desmoronar de uma identidade que articulava historicamente as praias e as comunidades espalhadas por todo o território e que agora apenas mendigam que não lhes seja vedado o acesso franco que sempre dispuseram a esses espaços de lazer.

Começa a faltar espaço para demonstrar aqui o encolhimento avulso e não planeado do Litoral Alentejano, mas não podia deixar de lado a referência aos megaprojetos fotovoltaicos que ameaçam aldeias, montados e o ambiente natural transformando-os em mero palco de um infinito oceano de espelhos de onde desaparecerão sobreiros, culturas tradicionais e praticamente toda a biodiversidade. A Central Fernando Pessoa, na freguesia de São Domingos e Vale de Água (concelho de Santiago do Cacém), a concretizar-se, será mesmo a maior da Europa. A transição verde tem custos sociais, ambientais e de desenvolvimento local a que nem os movimentos ambientalistas conseguem opor-se, divididos que estão pelas óbvias contradições deste processo.

Toda esta convulsão contou também com a ajuda das frágeis estruturas políticas locais – municipais e supramunicipais – muitas vezes impotentes para contrariar ou mitigar as consequências dos gigantescos investimentos, mas noutras vendo ali também uma fonte de receitas e protagonismo que nunca tinham antes experimentado. Ainda mais grave foi que esta revolução tem sido indiferente às orientações e apostas dos instrumentos de gestão territorial e de proteção ambiental, revelando infelizmente a sua crescente insignificância, reconhecida na respetiva suspensão, alteração e desadequação face aos mais diversos interesses setoriais, nacionais e internacionais. O desenvolvimento é coisa que ainda não se viu e todos temem que os novos investimentos públicos a realizar sejam apenas para ampliar ainda mais o alcance das apostas económicas entretanto realizadas.

Para já o que sabemos é que hoje os valores ambientais estão a claudicar, a população residente continua a diminuir, o parque habitacional de residência habitual sem aumentar e a ficar pressionado por uma procura nunca vista, a estrutura demográfica a envelhecer, os fluxos imigratórios a injetarem mão-de-obra desqualificada, a baixo custo e com vínculos laborais mais que precários, a fragilização da coesão socioterritorial a aprofundar-se com uma mobilidade em transporte público que tarda em qualificar-se e a dar resposta a uma população, em parte envelhecida e em parte imigrante, o aumento desmedido dos valores médios dos prédios rústicos transacionados, que entre 2009 e 2019 mais que duplicaram (+119%), entre muitos outros aspetos que descrevem a vulnerabilidade da situação que se vive hoje no Litoral Alentejano.

Neste território que não chega para as encomendas e em que os inúmeros investimentos se empilham indiferentes a lógicas de ordenamento e qualificação socioterritorial vemos todas as contradições entre crescimento e desenvolvimento, entre fatores fortes e fatores fracos, entre quem se impõe e quem se submete.

A ilusão do desenvolvimento sustentável, equilibrado, estratégico e resiliente (e outros chavões que aqui quiserem incluir), mesmo que apoiado por inúmeros e bondosos planos, programas e políticas de gestão do território, está aqui infelizmente demonstrada em todo o seu esplendor. Quem sabe se a regionalização não teria permitido preparar um futuro mais colaborativo, sustentável, justo e menos casuístico?

* Geógrafo do Instituto Superior Técnico – Centro para a Inovação em Território, Urbanismo e Arquitetura

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