Comecemos por um poema. Aquele onde escreve: “Chegou o momento/ de te contar/ o meu segredo:/ quero um mundo/ onde as flores calem as armas./ Também aprenderás a ser o seu guardião”. Que mundo é este que deixamos aos nossos netos e como é que podem ser guardiões de paz num cenário de ódios?
É verdade que, na atualidade, boa parte das pessoas que governam o mundo (eleitos ou não) parecem guiar-se pela violência, pela agressão, pelo ódio aos mais frágeis. O negócio das armas, a sede de poder, a ganância do lucro desmedido, parecem alastrar e tornar o mundo cada vez mais desigual e perigoso. Mas, como diria o meu antigo professor José Barata Moura, a realidade é muito complexa, não é o instante, mas um processo. E nesse processo há muitos elementos, às vezes até contraditórios. Por isso, o que deixamos aos nossos netos é também um mundo feito de muitas batalhas, de muitas evoluções não só tecnológicas, mas também morais, que fomos construindo ao longo da nossa vida e também da vida das gerações anteriores. O que eu desejo para os meus netos e para todas as crianças é que consigam ser “guardiões”, que se afirmem como cuidadores de um mundo onde todos caibam (porque há lugar para todos…).
O que a levou a escrever este livro?
O livro começou a ser escrito a partir do momento em que me senti completamente rendida a tudo o que significa assistir e acompanhar de perto o nascimento de um novo ser humano. É uma experiência única, avassaladora e renovadora, que tentei expressar em palavras. Depois, juntaram-se várias motivações que me levaram à publicação. Entre elas, a noção de que esta expe- riência sendo pessoal, é também universal e, como tal, pode ser partilhada.
Há no livro momentos de “júbilo” – para utilizar a palavra que escolheu – mas essencialmente são pessoais, afetivos, numa caminhada entre avó e netos por um mundo onde “tudo se desmorona”. Ao chamar-lhe “Sobre a Alegria” pretende acenar com algum sinal de esperança?
Sim, claramente. O título do livro também poderia ser esse “sobre a esperança”. Mário Benedetti falou em “defender a alegria como uma trincheira” e, na verdade, é isso que temos a defender, aquilo que nos protege, o que poderá ser abrigo das várias tempestades da vida. Sem essa força anímica que nos permite encarar cada dia como uma nova possibilidade, a existência tornar-se-ia demasiado pesada. Esta alegria de que tento falar não é um otimismo superficial, vazio; pelo contrário, é uma enorme força de resistência. Celebrar a vida e a sua beleza é a melhor forma de resistir aos “tempos sombrios”, ao desespero e ao conformismo. É da alegria que nasce o desejo de construir novos caminhos, mais livres e mais justos, ou seja, a “esperança realista”.
No prefácio, Carmen Serejo escreve que “ser avó é uma con- quista partilhada”. Pedia-lhe que me comentasse esta frase.
Carmen Serejo é uma mulher muito sensível e cheia de sabedoria. Por isso, ela percebe bem que os seres humanos se vão construindo, como pessoas, em diálogo uns com os outros, em interação, tecendo relações sociais e de afeto. Hoje, os neurocientistas falam do “cérebro social” e das aprendizagens que fazemos ainda antes de nascer. Se somos os escultores da nossa vida, esse trabalho é feito a muitas mãos e com muitos materiais. E aqui há (ou pode haver) um lugar muito especial para esses seres tão especiais que são as avós e os avôs. Na minha perspetiva, têm um papel fundamental na socialização das crianças.
Há um outro poema onde escreve “Nas tardes de domingo/ vou contar-te as histórias/ que as minhas avós contaram”. Parto daqui para lhe perguntar em que medida é importante essa partilha, tirar os olhos do telemóvel e conversar?Na relação com os meus netos está presente a memória da relação que desenvolvi com as minhas avós e com a minha bisavó. É uma memória de afetos, mas também de aprendizagens de vida. Foi com elas que formei, ainda criança, o sentido de justiça. Nas sociedades atuais, com as crianças e os jovens, escasseia algo essencial: as palavras, as conversas, as histórias das avós. A própria história da família deixou de ser transmitida e conhecida. É como se o mundo se reduzisse apenas a cada momento particular.
Será porque os avós não lhe escreveram poemas, nem contaram histórias, que algumas “crianças deixaram de o ser, à medida que iam, gradualmente, deixando de ser humanos, matando a imaginação”, como escreve o avô Júlio?
Gostaria que todas as crianças tivessem uma avó a contar histórias, o mundo seria bem melhor. Dito de outra maneira: se em vez de 5% dos orçamentos dos países para armamento, fosse 5% do orçamento para a cultura, o mundo seria bem melhor. Como disse Carmen Serejo sobre este livro, ele também é um grito/alerta para a “impiedade, a falta de compaixão e a desumanidade que emerge da idiotia”. A idiotia que se tor- na ainda mais infame quando usa crianças para marketing político.

“SOBRE A ALEGRIA – CARTA AOS MEUS NETOS”
Maria do Céu Pires
Edições Colibri
92 páginas – 12,00 euros