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Rui Arimateia: “Margarida Morgado – da saudade e da memória”

A Margarida sinto-a como uma espécie de superego da cidade de Évora, apontando desde sempre as disfunções sociais e culturais de uma sociedade que ela acompanhou e que ajudou nos processos de mudança de mentalidades. Rui Arimateia (texto)

“A vida é breve, rápida, tudo nos dá de passagem. 

Requere a nossa atenção, faz de nós a sua antena 

para que no silêncio de nós a trabalhemos, 

a incluamos no nosso ser, a comuniquemos no nosso estar”

Margarida Morgado 

(3 de outubro de 2011)

Com este texto gostaria de convocar a presença poética e humana da Margarida Morgado. Muita saudade deverá ela eventualmente sentir de Évora, dos seus amigos e dos espaços por ela frequentados e vividos tão intensamente. Um dia quererá cá voltar, para se deleitar ao sol da sua praça de eleição – a Praça de Giraldo.

A Margarida sinto-a como uma espécie de superego da cidade de Évora, apontando desde sempre as disfunções sociais e culturais de uma sociedade que ela acompanhou e que ajudou nos processos de mudança de mentalidades. 

Margarida era diferente! Sofreu com isso na família, escola, na sociedade, na universidade, na sua vida profissional… Margarida sempre foi a mesma Margarida de quando eu a conheci há quase quarenta anos, com a sua inspirada veia de criatividade narrativa e poética, e detentora de uma poderosa palavra quando partilhava, tão generosamente, a sua Poesia… a mesma Poesia que fazia derramar por todos os poros do seu corpo, da sua alma, do seu espírito!…

Margarida Morgado, no seu “exílio” de fim de vida, em Cascais, tinha imensas saudades de Évora, das suas ruas, das suas esplanadas, dos seus amigos, de todo o envolvimento da cidade que ela tão bem conhecia e amava. Para vencer a saudade escrevia sobre Évora e de cada vez que lhe telefonava ouvia-a ler um ou dois poemas escritos a propósito. Poemas que precisava urgentemente de partilhar.

Margarida era das raras pessoas que eu conhecia que tudo davam sem nada receberem em troca. A vida fluía através do acto criativo da escrita, da leitura, da afectividade e do diálogo permanente com os outros. Margarida era (e ainda é, através da sua obra) uma poeta de mão-cheia. A poesia brotava de dentro dela naturalmente, como a água cristalina brota de uma fonte numa bucólica paisagem campestre, escrevia e declamava como só ela sabia e sentia. Escrevia para partilhar. 

Os momentos mais mágicos para ela eram os da transformação dos seus poemas em livros, eram os lançamentos dos seus escritos editados entre amigos e conhecidos que acorriam com todo o agrado a esses instantes de partilha e de comunhão da palavra.

Diz a máxima popular que “recordar é viver”, deste modo, convivamos com alguns escritos da Margarida Morgado fazendo com que a sua presença se manifeste através da leitura e da escuta.

O MEDO DE SERES QUEM ÉS

O medo de seres quem és te devora

E assim vais perdido de ti vida fora

Como se a manhã nascida há pouco te sorrisse

Vais perdido de ti como quem chora

Uma mágoa antiga que te devora

Nunca sarada, ferida aberta pela constante sede

Insaciada, insaciável

Aquela mesma sede que te acompanha

Desde que nasceste até morreres.

Margarida Morgado

(Cascais, 7 de fevereiro de 2021)

A nossa amiga Margarida Morgado deveria ser das pessoas que mais escritos tinha guardados, na sua memória prodigiosa e nos seus cadernos que diariamente enchia com recordações e poemas e pensamentos, muitos deles sobre Évora e sobre os seus concidadãos. 

Por vezes lá se editava um livro com poemas, se publicava um ou outro texto em revista ou edição mais especializada. Falta, ainda, a edição de uma Memorabilia onde se reúna a grande colecção de escritos sobre Évora, sobre o seu pensamento tão dinâmico, sobre o seu sentir, muitos destes escritos ainda em posse (simbólica, como ela gostava de referir) da Margarida. É claro que poderão ser escritos incómodos perante a irreverência que sempre caracterizou a Margarida no que diz respeito à sua vida e às pessoas que a rodearam e que com ela partilharam amores e ódios.

Exemplo:

“Évora chocarreira, maldizente, desbragada, festiva, religiosa, beata, carnavalesca penitencial do séc. XVI. Évora monumental. Évora humanista. Évora imperial mecenática. Évora misericordiosa e inquisitorial. Évora das conspirações dos não ditos. Évora dos meio ditos. Évora das confissões e das denúncias. Évora heterodoxa. Évora nacionalista e cosmopolita. Évora das maquinações e das intrigas. Évora que o séc. XVI marcou o seu selo, indelével. Évora das senhoras vizinhas descaradas, maldizentes indiscretas, curiosas, metediças de todos os tempos! Évora das mulheres da rua, condenadas pela Câmara de antanho a pagar uma multa que duplicava se reincidiam uma segunda vez, e se transmutava numa expulsão da cidade com um freio na boca se a contumácia persistia”.

(…)

Margarida Morgado

(Évora, 2003)

A Margarida sinto-a, no fundo, como uma espécie de superego da cidade de Évora, apontando desde sempre as disfunções sociais e culturais de uma sociedade que ela acompanhou e que ajudou nos processos de mudança de mentalidades. 

Margarida era diferente! Sofreu com isso na família, escola, na sociedade, na universidade, na sua vida profissional… Margarida sempre foi a mesma Margarida de quando eu a conheci há quase quarenta anos, com a sua inspirada veia de criatividade narrativa e poética, e detentora de uma poderosa palavra quando partilhava a sua Poesia… a mesma Poesia que fazia derramar por todos os poros do seu corpo!

Margarida Morgado, no seu “exílio” de fim de vida, em Cascais, tinha sofridas saudades de Évora, das suas ruas, das suas esplanadas, dos seus amigos, de todo o envolvimento da cidade que ela tão bem conhecia e amava. Para vencer a saudade escrevia sobre Évora e de cada vez que lhe telefonava ouvia, com todo o prazer, um ou dois poemas escritos a propósito.

évora das ruas discretas

das histórias murmuradas

nas passadas de quem passa

rua abaixo rua acima

ao longo de horas secretas

Margarida Morgado

(14 de fevereiro de 2005)

Até um dia, Margarida!

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